segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Um Conto de Natal em Duas Partes (Parte II)

Foi a Solange quem me ergueu, toda preocupada, e eu ainda estava meio grogue e só sabia dizer que estava tudo bem, e que foi só um susto. Só que só um susto porra nenhuma! Foi um baita susto, porque aquele choque e a queda podiam ter me matado, mas mesmo assim eu não queria parecer fraco na frente dela e já queria levantar e subir de novo pra ver o que tinha de errado. Então a Solange me segurou e me mandou ficar sentado e disse que ia buscar água, e eu fiquei ali, tentando entender o que tinha acontecido, e sentia o corpo tremer todinho e um troço estranho na cachola. Eu nem mesmo conseguia entender o que aconteceu porque na hora estava olhando pra Solange, e não sabia se tinha um maldito fio desencapado ou o que, mas sabia que eu estava sem luva, e isso era errado, e eu nunca tinha errado assim em tanto anos.

Foi só pensar nisso que eu fiquei preocupado com essa das luvas e tentei pensar porque tinha esquecido delas. Então eu olhei o papai-noel ali parado, e não sei se era por causa do susto e da cabeça meio tonta e aquela meia luz que deixava umas sombras, mas o boneco me olhava com aquele sorriso psicopata, e eu fiquei com medo porque parecia que ele estava me provocando e dizendo que a vingança estava feita. Então eu me lembrei das imagens de quando era pequeno, das figuras do Deus de barba e roupão branco e fiquei até meio sem saber o que sentir: era meio que uma mistura de medo e de raiva, não sei, algo assim... estranho.

E eu tentei levantar e sair dali, mas ainda estava meio tonto; então sorte que a Solange chegou e me segurou, porque me impediu de cair e arrancar o pingüim que me apoiava. Então ela me deu a água, disse que já tinha ligado pra Samu e avisado o Silva pra vir ver o negócio. E eu ainda tentei dizer que eu era o responsável e eu tinha que resolver, mas a mulher mostrou porque era segurança e me levou dali na força.

Nós fomos pro HPS, e o médico fez uns exames e me mandou ficar ali a noite toda. Então a Solange veio me ver e pedir se tinha que avisar alguém, mas minha única família era minha irmã, e pra ela não precisava avisar.

Então eu não queria ficar ali de jeito nenhum porque estava mesmo preocupado com o que tinha acontecido e quando fico assim, o único lugar que me deixa tranqüilo é em casa, e eu ficava repetindo que aquilo nunca tinha acontecido e tal.
- Eu sou um bom eletricista – eu dizia – não to nessa empresa por acaso. Agora não sei o que aconteceu pra eu ter errado assim.

Ela tratou de me acalmar e disse que ia pedir pro Silva me dar uns dias de folga, mas eu disse que não queria, porque não gostava de ficar sem fazer nada, então a Solange não queria ficar discutindo e disse que tinha que ir embora, mas ia passar lá em casa amanhã depois do trabalho pra ver como eu estava. Eu nem consegui dormir direito de noite, e não sei se era a cama de hospital ou se era aquela coisa estranha dentro de mim que não me deixava sossegado, mas eu tive até uns sonhos estranhos.

No outro dia, o médico me disse que eu podia ir embora porque não tinha nada de errado comigo, e eu fui pra casa e passei o dia sem saber direito o que fazer. A Solange foi lá de noite e continuou insistindo na folga e disse que não adiantava eu dizer não porque o Silva já tinha decidido.

Então, depois de um tempo, ela olhou bem a minha casinha e perguntou com quem eu ia passar o natal, e eu não sabia o que responder, porque desde que meu pai sumiu com outra, e minha mãe morreu, eu ia pra casa da minha irmã nessas festas, mas a família do meu cunhado era tão mala, que eu já não aguentava mais. Então eu demorei pra responder, e ela acabou me convidando pra ir na casa dela, e foi assim que eu pareci acordar de verdade daquilo tudo, olhei pra ela e me dei conta que a mulher que eu gostava estava ali na minha casa, dando a maior atenção pra mim, mais ainda, ela tinha acabado de me convidar pra passar o natal com ela. Então eu perguntei:
- No duro?
- Sim. A gente faz uma janta bem farta até. Daí fica lá no jardim ouvindo um som, conversando, uns até se animam a dançar. Só que antes disso a gente sempre vai na missa. Se quiser pode chegar depois.
- Tá. Vou sim – eu disse apressado, com medo de ela desistir.
- Combinado.

Ela me sorriu e saiu, e eu fiquei ali meio pateta, olhando a porta, sem saber direito o que pensar. Então eu voltei a ficar estranho, e me larguei na poltrona e fiquei olhando o teto, pensando naquele sentimento doido que bateu depois da queda, o jeito como o papai-noel me olhou só podia ser coisa da minha cabeça, mas esse sentimento que veio junto... não sei. Era tipo medo, mas um medo diferente, medonho, não sei, um medo sem explicação, medo do escuro misturado com o medo da queda.
Então acho que senti medo da morte pela primeira vez, e junto veio uma raiva, não sei do que, raiva de tudo e todos, como se aquilo tudo só pudesse ser culpa de alguma outra coisa, mas não minha.

Eu fui dormir e ainda estava meio pendurado nesse sentimento, e acabei sonhando com queda, sabe aquele sonho que a gente tem de que tá caindo num escuro sem fim? Pois é, eu fiquei sonhando isso o tempo todo, e esse maldito sonho continuou por mais umas noites, e ele só mudava de lugar, às vezes eu caía da escada, às vezes de um morro, às vezes do andar de cima do shopping.

Passei os dois dias até a véspera do natal sem sabe o que fazer, porque o Silva não arredou pé e me deu a licença. Então que eu vi que minha vida sem o trabalho não tinha muita outra coisa, porque eu tinha minhas diversões, mas já fazia tempo que eu gostava era do sossego da minha casa, mas muito tempo de sossego me fazia mal. É aquela história: eu nasci pra ser quero-quero, porque construir o ninho e não fazer mais nada não era pra mim, e eu precisava continuar trabalhando, ou isso, ou eu precisava arrumar alguém com quem dividir esse tempo livre. Então eu lembrei de novo da Solange, e isso tudo se misturou com o sentimento estranho que eu estava tendo, e eu resolvi comprar um presente pra ela.

Então fazia tempo que eu não saia comprar presente de natal, e o centro naqueles dias estava o inferno, era gente saindo pelo ladrão, eu mal conseguia andar na rua, e entrar em loja nem pensar. Olhar vitrine era burrice, que só se via era cabeças, costas e bundas dos outros, tudo amontoado que nem urubu em carniça. E eu não acreditei foi quando me vi dentro de um shopping pra comprar um presente, mas não tinha jeito. Fui direto numa loja de chocolates. Eu não sabia o que dar, mas achei que chocolate toda mulher gosta, mas então me dei conta do calor, se fosse dar bombons, era melhor dar dentro de uma caixa com gelo. Então eu saí e fui olhar roupas, mas não sabia o tamanho e o gosto da Solange, porque quase não a vejo sem o uniforme. Então eu passei na loja de bijuteria, mas isso é presente pra homem que conhece bem a mulher, e eu tinha que ir mais calmo porque estava recém começando a conquista. Então eu zanzei tanto no meio da confusão, que acabei comprando uma garrafa de champanhe, e nem me dei conta da merda: era presentinho bem safado aquele, porque se não é pra aquelas pessoas que gostam e que sabem do assunto, é só pra deixar guardado na cristaleira como se fosse um troféu, até que num ano novo, de porre, ela abre aquele negócio porque não tem mais nada pra beber; ainda mais quando é essas espumantes vagabundas como a que eu comprei. Mas pelo menos foi de coração.

Ainda que gastei um dia nessa função, também fiquei meio irritado, porque enquanto eu tentava voltar pra casa fiquei com vontade de mandar todo mundo à merda com aquela mania de compras, porque mesmo de moto eu estava trancado no transito, querendo matar um, e pensando que merda eu fui fazer. E então eu ouvi meio longe, por cima das buzinas, um som bonito, umas vozes como que de anjos estavam cantando em algum lugar, e elas pareciam vir da direção da catedral, e eu fiquei com vontade de ir até lá porque parecia um negócio que acalmava: o que eu estava precisando.

Consegui sair dali fazendo umas manobras ilegais e peguei uma rua que levava pra catedral, e vi que era alguma programação natalina: um coro muito bonito cantava uma dessas músicas que a gente gosta mesmo sem saber o que diz, porque a letra é em alemão. Então tinha bastante gente olhando, e eu fiquei mais afastado, ouvindo e me acalmando, e era mesmo muito bonito, e eu achei que aquilo sim era espírito natalino.

Então não sei quantas horas fiquei por ali porque perdi a noção de tempo, e na verdade, tinha perdido a noção de tempo e espaço porque estava tão embalado pela melodia que pensei ter flutuado por um instante. Não sei, mas sabe aquela coisa bem de leve, como se a nossa alma tivesse dado um tempo, ido ali e já voltado? Eu acho que eram as cores das luzes na fachada bonita da catedral e as vozes e a figura bonita que o coro fazia e os movimentos do regente, e tudo isso meio que se juntou com aqueles dias estranhos, e eu acho que tudo ajudou pra que eu tivesse a sensação de flutuar mesmo. Não sou pessoa das mais cultas, mas também sei apreciar as coisas bonitas, e aquilo era bonito, ainda mais quando a gente está assim como eu estava, meio tristonho, meio perdido, meio medroso, meio sem saber direito o que a vida ta fazendo com a gente.

No meio daquilo tudo, mesmo a cretinice do natal pareceu sumir, e eu pensei que ali, naquelas vozes e melodias podia haver um Deus, não sei, mas talvez eu tenha achado uma forma de aceitar Aquela existência, se visse que Ele estava mesmo fazendo alguma coisa por mim, como aquele coral estava. Então eu só fui acordado com a explosão dos fogos que acabavam a programação, e eu estava tão envolvido na atmosfera de paz que nem a barulheira me irritou, e achei até bonito o colorido dos fogos sobre a praça.

Eu voltei pra casa e fiquei pensando em muitas coisas, coisas profundas que a gente não se acostuma a pensar, porque parece ser coisa dos que nascem pra isso, os padres e os filósofos e os professores. Então eu pensei na vida, na morte, no tempo, e achei que talvez o medo que eu sentia fosse de alguém que se esqueceu de aproveitar um pouco mais as pessoas, mesmo elas sendo estranhas, porque ainda tinha as legais. Então, talvez eu tivesse envelhecido um pouco naquele natal, e lembrei de muita coisa que aprendia com minhas tias carolas, mas o que era mais forte era a vontade de acreditar em algo a mais. Então, eu, sozinho ali na minha casa, ainda ouvindo o eco do coral, percebi que tinha desistido de alguma coisa... talvez eu tivesse era mesmo desistido de acreditar.

De noite sonhei de novo uma coisa muito estranha, mas não tinha mais queda. Eu andava num descampado e via um morro onde em cima tinha uma escadaria, e eu subia a escadaria, mas ela era cumprida, muito cumprida, e de repente eu chegava no final e não tinha mais pra onde ir, e tinha só o céu na minha frente, e pra trás a escadaria descia. Então eu sentia muito medo, porque estava bem na beirada e quando olhava pra trás, a escadaria era tão reta e estreita que eu tinha medo de voltar, e eu ficava ali parado, sem saber pra onde ir e morrendo de medo. Então eu ouvia as vozes do coral e, lá longe, mais adiante, podia ver o coral cantando na frente de uma igrejinha com uma torre pequena. E fiquei com vontade de ir lá, mas continuava com medo, e então eu olhei pros meus pés e vi asas. Sim, asas nos meus pés, e eu começava a perder o medo, por causa da vontade de ir até o coral. Então eu só pisei e fui e andei no céu mesmo, com as asas nos pés batendo rápidas que nem asa de colibri.

Então eu acordei com uma vontade louca de voar, mas sem saber se tinha chegado na igreja ou não. Nossa! Que sonho maluco! Eu me sentia muito estranho porque tudo aquilo se misturou, e acabou que me deu vontade de ir à missa com a Solange e a família dela. Eles eram gente simpática, querida e te recebiam muito bem.

E acabou que foi muito bom ir à igreja porque foi uma missa simpática e boa, e eu pensei que ia ser aquela coisa de descer a lenha, mas não, porque o padre era um sujeito legal e falou de amor, de esperança, de nunca desistir dos outros porque Jesus não desiste da gente, e eu achei aquilo bem a ver com o momento, e o jeito como ele falava parecia mostrar algo além, alguma coisa que não era nada do que eu tinha imaginado até hoje.

Então, no final da missa, as pessoas se cumprimentavam e desejavam feliz natal, e o clima era bem agradável, e eu estava me sentido bem e andei onde tinha muitas imagens de santos e de Jesus, mas nada daquilo dizia alguma coisa. Então acabei topando com uma bíblia esquecida em um dos bancos, e tinha nela uma folha seca de árvore marcando uma página, e aquilo me pareceu tão interessante, que fiquei meio abobado olhando, e, de repente, eu achei que ouvi como um sopro, uma voz dizendo que eu não desistisse. Então olhei pros lados e vi a imagem de um Jesus bem diferente, de sorriso simpático e olhos espertos, e eu simpatizei com ele e fiquei encarando aquela figura tão diferente de todas as outras que eu conhecia, e ele parecia alguém de verdade, alguém confiável. Então, era como se não fosse a imagem dele, mas o que ele tinha feito por mim, pra todos, e achei aquela história de ouvir Jesus tão maluca que até pareceu mais fácil de acreditar novamente.

Quando fomos pra casa da Solange, ela ficou muito feliz com o presente e disse que não precisava e que já estava bom eu estar ali, e eu fiquei achando que estava ganhando a mulher e não conseguia pensar em outra coisa, mas então ela saiu pra guardar o presente, e eu fiquei pensando no olhar dela e na sinceridade dele e achei que aquilo era muito mais do que só interesse de mulher por homem, interesse de coisas do mundo, mas era um sentimento de quem de verdade se importa com os outros. Então pareceu que eu vi nisso aquele Jesus de novo, e parecia que Ele me sussurrava mais uma vez, e o olhar dela parecia com o Dele. Então, sem nem acreditar direito, eu acho que estava acreditando de novo.

É claro que eu não voltei a ser católico de verdade depois disso tudo, mas pelo menos voltei a acreditar em algo como Deus. Na verdade queria era acreditar em Jesus, pelo menos o Jesus daquela noite, mas como pra se acreditar no Filho, precisa se acreditar no Pai, eu acho que voltei a acreditar em Deus porque eu achei que no fim das contas não tinha porque não acreditar num camarada que, mesmo com toda sacanagem que fazem com Ele no dia do seu aniversário, ainda me pede pra acreditar porque Ele acredita.

Às vezes, quando ainda conto essa história pra Solange, ela me diz que se não conhecesse o marido que tem, diria que ele era um santo. Então eu olho pra ela e digo que em santo eu não acredito, porque salafrário que faz e acontece, daí tem um piripaque qualquer, diz que é uma visão, que se converteu e sai fazendo milagre... Isso pra mim é uma baita sacanagem de quem não respeita a fé dos outros. E pra mim Deus é Deus, o Filho Dele é o Filho Dele, e o resto é tudo homem que só sabe fazer merda.

Um Conto de Natal em Duas Partes

Dedicado a Charles Dickens

Então, eu sempre pensei desse jeito: é a natureza que te diz se tu vai ser André Lima ou Renato Portalupe, tu pode até tentar fazer história, mas se tu nasceste pra ser mais um então não tem jeito, e eu vejo isso nos pássaros, como o rabo-de-palha: ele às vezes pega e faz o ninho no pinheiro, no meio dos espinhos e isso deve dar um trabalhão, mas depois que faz, ele fica tão protegido que não precisa mais se preocupar, está lá pronto, e só tem que procriar e aproveitar a vida cantando. Então eu olho o quero-quero: ele faz o ninho no meio do gramado, e é fácil e sem trabalho, mas se tu olhas depois, ele tem que passar o resto do tempo se incomodando e cuidando dos filhotes. Então tu sabes que quando ele canta não é de alegria, é de preocupação. E ninguém vai me convencer que podia ser diferente se o quero-quero quisesse; não ia ser. A natureza disse pra eles serem assim, e cada um é como tem que ser.

Era mais ou menos isso que eu pensava da vida: você tinha que jogar com as cartas que ela te dá, e as coisas são assim, e não dá pra ficar se iludindo com essas ideias de que pode fazer algo pra melhorar. Tu achas que a vida te dá alternativa (pinheiro ou grama) pra tu escolheres, mas não, porque é ela mesma que te leva pra um lado ou outro.

Por isso eu achava o natal uma merda, uma epocazinha que me deixava de mau humor, quando eu mais via que a natureza era filha da puta. E digo natureza porque já não acreditava mais em Deus. Até tinha sido criado numa família bem católica, mas eu mesmo já não era mais católico. A última vez que tinha me confessado foi quando roubei bolacha do pote de cima do armário, e foi tanta ave-maria e padre-nosso de castigo, que o padre deve ter mesmo achado que as bolachinhas eram caras. Mas o que me fez desistir foi aquela mania de me fazer acreditar naquele Deus de barba e roupão branco, ou naquele Jesus dos olhos azuis, porque isso era muito difícil de engolir. Acreditar que o mundo foi criado por esse camarada? Não sei, mas era muito chato rezar imaginando falar com aquelas figuras dos santos e aquele Deus, umas imagens que não me diziam nada, até porque me fazia lembrar o papa, e esse camarada nunca me desceu. Por isso achei que era melhor acreditar em alguma coisa do tipo “natureza”, que mandava em tudo.

Então, como eu dizia, achava que o natal era epocazinha medonha porque trabalho num shopping, e não tem lugar mais certo pra se ver como o homem é bicho desgraçado. Passar os dias no shopping era provar que Deus não existia mais. Era difícil pensar que Ele tinha criado os homens pra ficarem andando e olhando vitrine e comprando coisa. Se a vida era isso, eu achava que ou Deus não existia, ou ele estava muito errado. E tudo isso eu achava até aquele natal, quando aconteceu uma coisa que me fez pensar.

Foi no meu primeiro natal trabalhando no shopping Barra Sul, um shopping muito, mas muito grande que abriu em Porto Alegre, um troço gigante. E a empresa onde eu trabalho cuida da parte elétrica de lá, e aquele era o primeiro natal do tal Barra Sul Shopping Center, e decidiram colocar um enfeite modernoso lá no meio: tipo uma ilha num entroncamento de corredores, cheio de presentes, papais-noéis, ursos-polares e pingüins, e tinha até papai-noel que girava um bebe urso-polar (só faltava uma coca-cola na mão), e num dos lados desse negócio tinha um papai-noel que se mexia, tocava flauta, piscava e cantava com um coral de pingüins mexendo a cabeça, um troço pra lá de medonho. Eu achava aquilo o fim do natal, e não sei como as crianças não tinham medo, porque o papai-noel era assustador e mais parecia um daqueles bonecos do Brinquedo Assassino. E pra mim aquilo era mais uma prova da bobagem que a religião tinha virado. Tudo bem que não sou mais católico, mas coitado do Jesus que de estrela principal da festa sumiu e deu lugar pro velho de vermelho; o que era pior: tinha que ser de vermelho.

Então, naquele ano, já que eu era sozinho e não gostava do natal mesmo, me dei mal e fui escalado pra ser um dos responsáveis da geringonça. Digo me dei mal porque coisa sofisticada no Brasil é assim: só serve pra dá merda e ferrar com a vida da gente. Só faltou eu morar no shopping naqueles dias, porque quando tudo fechava de noite, lá ia o Jerônimo fazer a manutenção, e abre papai-noel, e tira a cabeça de pingüim, e enfia chave de fenda na traseira do urso-polar. Sentia-me o Zé do Caixão fazendo um filme de terror, mas ainda tudo bem, isso não era nada, porque era minha função fazer manutenção de outras partes do shopping, e até era legal, porque eu podia ficar mais tempo perto da Solange. Pior era quando aquele festival de bizarrice eletrônica teimava de estragar bem no meio do expediente, porque aí lá ia o Jerônimo com sua escada e caixa de ferramenta, no meio do povaredo.

Um dia tive de ir quando ainda tinha uma função de gente olhando, um monte de pai com filho chorando porque o papai-noel e os pingüins não cantavam, e eu cheguei, deixei a escada no chão porque não ia precisar (só andava com ela pra fazer cena) e entrei no cercadinho. Já tinha todo mundo saído dali, e só ficou um pai com a filha pela mão:
- O que ele vai fazer papai?
- Vai cuidar do papai-noel.
- Ele vai dá remédio pra ele vai?
- Vai minha filha. Ele é o médico que cuida do papai-noel.

Eu olhei pro homem que tinha vindo com aquela história pra pobre da criança e pensei: tem coisa mais patética do que ser pai de criança nessa época do ano? Inventa cada história só pra não acabar com a magia do natal, mas enche a coitada de brinquedo e faz acreditar que essa é a idéia do natal, é uma merda. E o homem viu meu olhar de poucos amigos e ainda deu um sorrisinho safado e me pediu confirmação:
- Né que o senhor vai cuidar bem do papai-noel?

O azar dele foi que bem na hora eu já estava desrosqueando e tirando fora a cabeça do bom velhinho:
- É – eu disse, e tentava não rir porque a criança já começava a abrir o berreiro atrás de mim.
- Calma minha filha. É assim mesmo, ta vendo? É só um robô. O tio tem que fazer isso pra arrumar. Tá vendo? É só um robô. Já passou. Já passou.
A menina não queria saber de arrego e gritava:
- Mas você disse que era de verdade.
- Foi, mas não é minha filha. É só um robô, tá vendo?

Depois que a mãe veio buscar a menina, acho que o homem viu meu sorrisinho e ainda quis botar a culpa em mim.
- O senhor precisava ser tão insensível?
- Desculpe. Como?
- Tirar a cabeça do papai-noel assim, na frente da minha filha.
- Olha meu senhor, é a única maneira de arrumar.
- Mas podia ter sido mais delicado.

Então ele já estava me irritando, porque o coitado é obrigado a trabalhar no natal, tem que cuidar de uma geringonça medonha daquelas, e ainda ouvir desaforo de rico metido a besta?!
- Delicado como? Queria que eu pedisse com licença e me desculpe pro Papai Noel? Ninguém mandou inventar que isso era de verdade.
- O senhor não tem filhos não?
- Graças a Deus não.
- O senhor devia ser penalizado sabia?
- Penalizado por quê? Por que não tenho filhos? Ou por que to fazendo o meu trabalho?

Nessa hora nós dois já estávamos falando alto e algumas pessoas passavam olhando assustadas, e foi quando a Solange chegou perto.
- Algum problema, senhor?
- Esse funcionário aqui arrancou a cabeça do papai-noel na frente da minha filha, sem nenhum tipo de aviso ou vergonha.
- Mas é a única forma que ele tem de arrumar, senhor.
- É, mas ele podia ter sido mais delicado.
- Mais delicado como pelo amor de Deus?! Não fui eu que inventei esta merda. Devia era reclamar pra quem fez isso assim.
- Calma, Jerônimo. Deixa que eu resolvo – ela disse e saiu com o homem, e ele ainda me deu uma última olhada de cima a baixo, parecia querer mostrar que era mais alto, e que isso dava mais importância, mas quanto maior, maior a queda, eu pensei, e voltei pro meu bom velhinho decapitado, e ainda aproveitei e dei uma relanciada pra ver a Solange.

Ela era uma morena dos cabelos em cachos e bonita de só vê, eu ficava impressionado com a seriedade dela como segurança. Devia ser braba e forte pra burro, porque uma vez assisti dar uma chave de braço num malandro que fez ele se contorcer todo de dor. Então eu gostava do jeito que ela conseguia ser feminina até naquele uniforme, tinha pose, mas quando dava o sorrisinho, mostrava que era mulher mulher mesmo. E eu já fazia tempo que atirava minhas pedras pra ver se conseguia alguma coisa, mas parecia ser trabalho demorado aquele. E eu gostava de passar por ela com minha escada e a caixa de ferramentas porque ela sempre me olhava com mais atenção. E quando eu estava lá no alto, com meu cinturão de couro e mexendo nos fios, ela passava em baixo, eu dava uma olhadela e ela sempre sorria de volta como quem gostava de me ver trabalhando. Não sei, mas acho que lá em cima eu fazia figura bonita, parecia importante, mais perto do céu, ainda mais com meu uniforme e todos aqueles apetrechos pendurados, devia dar um ar diferente, de gente grande.
- Pega leva da próxima, Jero – ela disse quando voltou – tive que convencer o cliente a não dar queixa tua.
- Dar queixa? Mais e o que eu fiz de errado?
- Nada, mas se o cliente acha que fez, pede desculpa e continua fazendo teu trabalho.
- Mas e pedir desculpa por que se eu não fiz nada errado?
- Tá, mas sabe como é essa gente.
- E é por isso mesmo que eu não peço desculpa. Ele acha o que? Que só porque pode vir comprar presente pra filha dele no shopping é melhor do que eu? Ele não sabe que o dinheiro que ele gasta aqui, acaba pagando meu salário? Quer me ferrar? Vai compra em outro lugar.
- Minha nossa, Jero! Calma. Pra que ficar tão nervoso?
- Ah... Tem coisa que me deixa fulo.
- É o tal problema com o natal? Você acha mesmo tão ruim assim?
- O problema é essas pessoas que vêm aqui me aporrinhar por nada e depois vai lá desejar feliz natal e paz no mundo. Se todo mundo aceitasse que cada um tem sua função e seu lugar, pronto. Eu sei fazer isso aqui e faço. Ele que vá fazer sei lá o que. Ou eu por um acaso reclamei que ele é rico e ganha mais dinheiro do que eu? É só uma questão de viver e deixar o outro viver. Pronto
- Tá bom, Jero. Tá bom. Agora vai fazer teu trabalho antes que outra criança venha chorar porque o papai-noel tá sem cabeça.
- Isso que tu não viu o que eu vou fazer com os pingüins.
- Ai, ai, ai, Jero. Tu não presta mesmo – Ela disse rindo e indo embora.

Pronto, eu ganhei mais um ponto, porque mulher gosta de homem que sabe ser engraçado, até quando está irritado, e, além disso, eu tinha mostrado que era homem de verdade, que tinha sangue nas veias.

Claro que mais tarde tive que me reportar pro chefe pra explicar tudo direitinho, e ele até deu risada, e disse que esse povo era assim mesmo, mas que da próxima vez eu devia fazer como a Solange disse, porque o cliente tem sempre razão.
De noite eu fui com minha escada fazer a manutenção de sempre, e, quando passei pela Solange, recebi mais um sorriso, afinal eu era o assunto do dia no shopping. Todos os colegas dali achavam que eu tinha que ter mais cuidado, mas mesmo assim eles me apoiavam e concordavam que quem estava errado era o cara.

Eu estava me sentindo muito mais por cima do que em qualquer outro natal e fui fazer meu serviço cheio de mim. Então vem o que eu digo: na vida é assim, a natureza é que manda. Eu estava lá em cima, me achando o cara, me sentindo o grandão, a Solange passou lá em baixo, eu fui olhar pra ela, ela me deu um sorrisinho, eu dei uma piscadinha, e foi aí que aconteceu. Não sei se foi descuido meu, ou se tinha alguma coisa errada na fiação em cima do pinheiro, mas eu sei foi que levei um choque que me derrubou da escada e tomei um tombo que podia ter sido bem pior se eu não tivesse caído em cima do monte de neve, umas neves feitas de algodão e espuma que amaciaram o tombo. Eu rolei abaixo e só fui parar porque bati nos pingüins que estavam parafusados no chão. Então fiquei um tempo deitado, tempo que não me lembro de sentir nada que não fosse meu coração batendo de um jeito que parecia ser no corpo todo, e o resto era só uma sensação estranha como se tivesse dado apagão na cabeça da gente.

FIM DA PARTE I

sábado, 22 de dezembro de 2012

Da Morte da Educação Humanística. Ou Por Que a Educação Não Pode se Tornar Utilitarista

A questão a ser aqui colocada é quanto ao sucateamento que deixa definhar a educação humanística. Pensemos não em humanística no sentido de educação redentora capaz de libertar os homens e torná-los todos intelectuais salvadores da pátria, mas sim na educação que ajuda o homem a ser humano, fazendo-o pensar não apenas técnica e utilitariamente, mas também pensar na vida em sociedade e nas relações pessoais.

Recentemente um estudante de direito de São Paulo foi agredido na rua por causa da sua opção sexual. O rapaz, militante da causa gay, disse que os agressores o provocaram, e ele respondeu à provocação por não aceitar que sua sexualidade deva ser alvo de xingamentos. Foi aí que os dois jovens partiram para a agressão física. Na sua entrevista, o rapaz questiona por que duas pessoas bem de vida, jovens, seriam capaz de entrar com o carro na contramão para atentar contra a vida de alguém que queria apenas chegar em casa. “Que fúria é essa que faz um cara que deve ter tido todas as oportunidades do mundo a bater em outra de forma tão agressiva? Por que a minha existência provoca uma fúria tão desumana?” Este questionamento perplexo bate num fundo problemático de nossa sociedade, e que poderíamos colocar em outras palavras assim: por que dois estudantes, com casa própria, carro, enfim, jovens que – dentro da terrível lógica da nossa sociedade atual – deveriam ter uma boa educação, tiveram uma atitude tão “primitiva” como essa?

Essa pergunta, acredito eu, serve para provocar a reflexão que quero trazer. Cada vez mais nós parecemos nos impressionar com as atitudes das outras pessoas, ou com o modo de pensar delas. Cada vez mais parece que estamos diante de um tempo em que o individualismo superou o respeito ao próximo. Isso tudo pode nos parecer absurdo, e ficamos a nos perguntar como comportamentos e pensamentos assim podem ainda existir num mundo tão moderno e avançado. O problema é que tendemos a confundir o avanço técnico-científico com o avanço ético e moral, o avanço tecnológico com o avanço humano. Porém, uma coisa não tem necessariamente relação com a outra. Já está mais do que provado de que a evolução do homem na área tecnológica não implica que estejamos também evoluindo como pessoas. O Século XX cansou de nos provar isso: suas duas grandes guerras e todas as suas outras tragédias nos mostraram que quanto mais marchamos para o aprimoramento da técnica, mais regredimos na capacidade de entender o outro e conviver com ele. O caso mais emblemático desse descompasso está no fenômeno que estamos vendo acontecer já há muito tempo e, ainda hoje, temos que, vergonhosamente, encarar: o sucateamento da educação humanística em detrimento do investimento na educação técnico-científica.

Em matéria do O Globo de hoje, ficamos sabendo que as ciências humanas perderam sua chance – já antes bem pequena, diga-se de passagem – de participar do programa Ciência Sem Fronteiras, que concede bolsas para graduação e pós no exterior. Isso é apenas mais um dos casos que ilustra o total desamparo das ciências humanas em relação às outras áreas do ensino. Qualquer pessoa que visitar o Instituto de Letras da UFRGS e depois for ao Instituto de Física (cito a UFRGS como exemplo porque conheço sua realidade) verá o abismo de qualidade na estrutura dos cursos. E isso você verá em outros Institutos ou Faculdades na área das humanas se comparados com qualquer outra área tecnológica – exceto algumas áreas etiquetadas como humanas, mas que acabam tendo investimentos maiores, pois dão mais “resultado” para a sociedade, como o Direito, a Economia entre outros.

E o problema não está apenas nas faculdades, mas também nas escolas, que recebem muito mais incentivo para o desenvolvimento dos cursos técnicos do que para as matérias “tradicionais” do currículo. Um pensamento utilitário terrível que acaba sendo internalizando pelos próprios alunos que se perguntam por que precisam estudar literatura, história, filosofia, sociologia ou geografia, em vez de aprenderem aquilo que sirva para eles quando forem entrar no mercado de trabalho.

A lógica assustadora por trás disso tudo é que a área das humanas não produz conhecimento “prático” e “útil” para a sociedade, pois, cada vez mais, o mercado e o sistema econômico em que vivemos pedem por profissionais com capacidades técnicas, mas não necessariamente capazes de pensar ou de saber viver em sociedade. Precisamos apenas de mais mão de obra que atendam a demanda do mercado, mas que não sejam capazes de saber respeitar o outro ou refletir sobre o mundo que nos rodeia, porque, obviamente, esse tipo de pensamento é inútil e não produz resultados. Cada vez mais, a educação, o ensino que prepara o aluno para ser humano é dispensável, pois não queremos mais pessoas no mundo, apenas novos autômatos.

É claro que a educação que eu chamo de humanística não é a salvadora do mundo. Mas ela é capaz de ajudar as pessoas a pensarem o mundo a sua volta, tornando-as capazes de conviver melhor entre si. Não estou dizendo que ela cura as mazelas, mas ajuda a desenvolver nas pessoas a capacidade de interpretar e compreender melhor a vida em sociedade, pois ela estabelece as bases para que sejamos capazes de enxergar no outro um ser humano como nós. O homem está constantemente interpretando as coisas a sua volta para tentar compreender melhor o mundo e saber como agir nele. Se insistirmos em uma educação voltada apenas para a técnica, com uma lógica meramente utilitária, é esse tipo de visão que vamos criar nos alunos, e é assim que eles passarão a interpretar o mundo: apenas utilitariamente, vendo o outro como algo que tem uma utilidade e não como uma pessoa igual a mim, que merece respeito e merece ser tratado como eu quero ser tratado.

Obviamente precisamos de investimentos na área técnica, precisamos possibilitar a nossos alunos sua entrada no mundo de trabalho, precisamos de mais e mais profissionais nessas áreas “práticas”. Acho que o investimento nas áreas tecnológicas é legítimo e deve continuar. O que não pode acontecer é simplesmente acabar com a educação humana; algo que está sendo feito gradativamente e silenciosamente, sem que ninguém perceba e se tornando cada vez mais natural – o que é ainda mais assustador.

Não podemos simplesmente achar que os cursos das artes e das humanas não merecem investimentos ou que não precisam de infraestrutura porque não produzem conhecimento útil para o mercado; afinal, eles produzem o conhecimento útil para a sociedade, e não vejo como podemos viver sem isso. Não vejo como podemos produzir cada vez mais engenheiros capazes de construir pontes perfeitas e seguras, mas incapazes de criar pontes entre ele e o outro do seu lado; como podemos produzir cada vez mais cirurgiões competentíssimos, mas incapazes de respeitar seus pacientes ou conviver com seus colegas; produzir mais especialistas em Tecnologia da Informação, mas incapazes de se comunicar com as pessoas a sua volta.

Se continuarmos insistindo nesse pensamento utilitarista da educação, continuaremos nos surpreendendo com jovens como aqueles que espancaram alguém só por causa da sua opção sexual. Continuaremos a ver o mundo avançando em tecnologias, mas regredindo em humanidade. Como escreveu Beatriz Sarlo, lembrando Gramsci e o caso da Itália já no início do século passado, a cultura humanística deve ser defendida não como um luxo, mas como uma necessidade.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Histórias do Fim do Mundo III

O Fim do Mundo

Então, o mundo não acabou, pensou Raul, sentado na sua poltrona, segurando uma lata de cerveja meio quente e olhando as notícias melancólicas no jornal da noite:

Dezembro de dois mil e doze. Milhares de pessoas se suicidaram e o mundo ficou bem mais vazio. Um grupo de milionários se reuniu num castelo em uma ilha e gastou suas fortunas em uma festa nunca antes vista. Beberam champanhe com doses homeopáticas de uma droga letal. Antes que pudessem ver que o tal último dia era só mais um dia, todos estavam mortos.

Raul pensou que era melhor assim. Se tivessem continuado vivos, se matariam de desgosto quando vissem suas fortunas gastas, e o mundo ainda inteiro. O fato é que, enquanto muitos haviam feito rituais bizarros ou se mataram por causa de uma profecia, Raul estava sentado na sua sala morrendo de calor e pateticamente olhando a televisão de sempre. Tudo isso pra provar que nada mudara. Mais um ano estava acabando, mais uma profecia furando, mais um fim de mundo passando e o mundo continuava na mesma, apenas mais vazio. Assim como a vida de Ra...

Bom mas na verdade, na segunda-feira, Raul descobriu que algo extraordinário havia acontecido e alguma coisa havia, no fim das contas, mudado na sua vida. Ela não estava mais rica, mas mais cheia de dinheiro. Ele estava mais rico.

O mundo era para acabar num sábado. Nesse dia, um temporal fortíssimo atingiu boa parte do planeta, e continuou chovendo no domingo, quando finalmente faltou luz em pelo menos todo o estado. Na segunda, por volta de umas cinco da tarde, ainda chovia, mas a luz começou a voltar.

A cidade havia ficado deserta, mas Raul achou que a volta da luz significaria a volta da rotina. Por isso, se levantou, praticou sua rotina caseira e foi até o caixa eletrônico. Precisava pegar o pouco de dinheiro que ainda restava pra poder começar a procurar emprego no dia seguinte. Seu chefe burro havia fechado a empresa e vendido tudo que tinha – mais um imbecil fazendo idiotices por causa de uma profecia.

Porém, qual não foi sua surpresa quando viu seu saldo surpreendentemente acima do normal! Estava, na verdade, simplesmente um milhão e meio acima do normal!
Desnorteado e sem saber o que fazer, Raul precisou ir até o bar mais próximo, tomar uma cerveja e depois um café – só não fumou porque estava firme na decisão de parar. Voltou pra casa e apenas conseguiu ficar sentado. Tentou pensar claramente. Havia acontecido um pequeno colapso no setor de energia, isso era certo. Não fora como o que disseram que iria acontecer, mas ainda assim, haviam ficado sem luz por quase dois dias. Talvez isso tenha afetado os sistemas dos bancos e alguma coisa tenha dado errado. Ficara sabendo que muitos funcionários de grandes bancos haviam surtado com o fim do mundo também, e tinham propiciado loucuras nas contas, dando prejuízos aos donos dos bancos. Ele não sabia se no seu banco isso havia acontecido, apenas achou que no fim das contas, quando as coisas começassem a voltar ao normal, no dia seguinte – porque todo dia seguinte traz as coisas de volta ao normal na experiência de Raul –, tudo seria solucionado e o dinheiro não estaria mais lá.

Achou melhor não cometer nenhuma loucura. Primeiro passou pela sua cabeça a possibilidade de retirar tudo, abrir a conta em outro banco, fechar aquela e, quando exigissem devolução do dinheiro, ele não devolveria. “O erro foi de vocês. Não tenho nada que ver com isso”, diria pra eles. Essa possibilidade passou por sua cabeça, mas se lembrou de como era incomodo lidar com os bancos.

Trabalhara durante dez anos no setor financeiro da empresa e sabia do que eles eram capazes. Sabia como seria uma dor de cabeça, um inferno, o fim do mundo, conseguir manter aquele dinheiro. Achou que era melhor esperar.

Apenas se sentou novamente no seu sofá, pegou mais uma cerveja e voltou a olhar a televisão pra ver o que estava acontecendo. Caos. Era isso que estava acontecendo. Pessoas que haviam cometido loucuras antes do tal fim do mundo agora estavam sem saber o que fazer. Milhares haviam se matado. O mundo estava certamente menos populoso. Suicídios coletivos e individuais, assassinatos: muitos decidiram resolver seus desafetos da forma mais drástica possível já que tudo iria acabar, outros quiseram dar vazão a seus instintos e impulsos. Resultado? Assassinos, patricidas, parricidas, fratricidas e todos os tipos de cidas que Raul podia imaginar.

Porém, uma prática, não muito difundida, mas que aconteceu nesse fim de mundo, e que não foi noticiada, foi a que o atingiu. Ele soube quando foi no banco no dia seguinte, e a quantia de um milhão e meio ainda estava em sua conta. Ele resolveu falar com a gerente. Era o fim do mundo pra alguns, mas pra ele o mundo continuava o mesmo e ele ainda temia se indispor com bancos. Foi então que soube que não havia nada de errado. Aquela quantia havia sido depositada na sua conta, por um senhor, que preferiu se manter anônimo, e que viera ao banco na sexta-feira, uns minutos antes da agência fechar. A gerente também explicou que mais de um caso daqueles havia acontecido na véspera – era provavelmente pessoas abaladas com o apocalipse.

- Mas se estavam abalados com o fim do mundo, por que doar dinheiro pra outra pessoa? O fim do mundo não ia chegar pra mim também?

Ela deu de ombros e não perdeu tempo em oferecer milhares de vantagens pra Raul e sua nova conta polpuda. Após algumas horas ouvindo as melhores vantagens de ser um cliente super-ouro-platina-diamante, ou coisa parecida, ele apenas assinou um contrato e foi pra casa. Nem mesmo seu cérebro, tão habituada a saber o que realmente prestava nessas papagaiadas todas, tão rápido em perceber onde estavam as armações, tão ligeiro em dizer não, nem mesmo ele serviu pra salvá-lo de ser um cliente com todas as vantagens que o banco pode oferecer pra sugar o seu dinheiro. Ele estava amortecido por causa de toda aquela situação. Nem mesmo dormiu, tentando imaginar quem teria sido o imbecil que doara aquela quantia e por que doara pra outro imbecil como ele. Não conhecia ninguém com tanto dinheiro que pudesse pensar nele pra dar toda aquela grana. Na verdade, não conseguia pensar em ninguém com todo aquele dinheiro. E por que ele? Por que escolher alguém como ele? Alguém tão... não sabia ao certo como se definir (e certamente nós também não saberemos como defini-lo), mas ele não se via como alguém merecedor de receber essa quantia, seja lá qual fosse a razão pra doação.

O sono demorou a vir, enquanto ele se perdia nas indagações, mas, em algum momento daquela madrugada quente e chuvosa, ele finalmente pegou no sono, e foi o sonho que teve naquela noite que o fez acordar cheio de decisões. A primeira coisa a fazer, ligou pra gerente e deu a descrição de um homem:

- Baixinho, cabelos grisalhos nas têmporas, terno impecável de risca de giz e um jeito irritadiço de falar e se mexer.
- Bem, ele não tinha um jeito irritadiço, senhor, muito pelo contrário, estava bem calmo. Diria quase deprimido. Mas ele era baixo, cabelos grisalhos nas têmporas e usava um terno impecável de risca de giz.
- Muito obrigado. Por favor, eu quero fechar a minha conta.

Certamente era o senhor Andrade; a única pessoa que usaria um terno impecável de risca de giz até mesmo na véspera do fim do mundo. Seu ex-chefe vendera tudo e, pelo jeito, o escolhera pra ser seu donatário. Por que não o filho mais velho? Por que não a mulher? Por que não o irmão mais novo? Porque eram todos imbecis como ele e também acreditavam no fim do mundo, pensou. Por que, então, havia sido ele o escolhido entre seus funcionários pra receber a bolada? Isso ele não sabia. E isso ainda iria continuar a incomodá-lo. Mas agora que sabia de onde viera o dinheiro e o que provavelmente aconteceria depois, sabia exatamente como agir: como sempre fazia.

Pegou o dinheiro, abriu uma nova conta em um banco que lhe era muito mais generoso, e começou a investir. Investir em que? Ora, não estava claro? Imóveis. Com a onde de suicídios e o monte de gente que vendera ou perdera tudo, mas não se matara, a matemática era fácil: imóveis sobrando e uma onda de compradores desesperados.

Comprou apartamentos e casas em diferentes áreas da cidade, dos mais caros aos mais baratos, além de alguns prédios comerciais. Os preços estavam ótimos. Conseguira começar as transações na hora certa, antes que a procura começasse a ser tanta que os preços inflacionariam.

Mas teria que esperar um pouco pra começar a alta dos preços. Primeiro, as pessoas que perderam tudo teriam que procurar os bancos pra pedir empréstimos, depois os bancos teriam que falar com o governo, que precisaria baixar alguma medida de emergência. Logo começariam as primeiras levas de compradores. Raul sabia que precisava de uma saída segura pra se caso algo saísse errado e, do que sobrou ele investiu em ações de empresas de donos que não haviam sido burros suficientes e mantiveram seus negócios. Na área de energia e informática ele conseguiu investimentos ótimos.

Gastou praticamente tudo que ganhara nesses investimentos e voltou a viver com o pouco que se acostumara. Nem quis começar a experimentar a vida de rico pra não se acostumar com um padrão muito alto. Esperaria ter uma renda suficiente pra não voltar a ser um assalariado. Depois, iria fazer tudo que sempre quis.

Não demorou até que a leva de desesperados enchesse os bancos de pedidos, e os bancos reclamassem com o governo que precisou tomar medidas de ajuda. Grande, pequeno e micro crédito começaram a inundar a praça, e as pessoas iniciaram a reconstrução de suas vidas. Logo Raul estava colhendo o que plantou. Seus imóveis mais baratos foram logo alugados. Uma de suas casas mais caras foi comprada. Esse dinheiro ele usou metade pra deixar na poupança e outra pra investir em mais alguma coisa lucrativa no mercado de ações: telefonia. As tais tempestades solares não haviam estragado nada e o setor de comunicação estava voltando a subir. Mais algum tempo e os prédios comerciais também foram alugados e, então, os apartamentos mais caros.

Se dois mil e doze havia sido um ano como qualquer outro pra Raul, sem ou qualquer perspectiva e sem nenhuma emoção, dois mil e treze entra com tudo, e ele, na páscoa, já era um dos homens mais ricos da cidade, talvez do estado. Estava na hora de fazer tudo que ele sempre quis fazer. Estava na hora de finalmente deixar de ser o contador medíocre que era pra ser um milionário e viajar pelo mundo, ter casa com piscina e carros importados. Beber bebida de primeira e comer nos melhores restaurantes. Estava na hora de achar uma mulher que pudesse encher de joias.

Bem quando estava planejando tudo isso, bateu a sua porta a pessoa que ele, desde o começo, estava esperando que viesse, mas que, no meio de toda aquela emoção econômica, havia esquecido completamente. Seu ex-chefe estava parado na sua frente, com os cabelos mais grisalhos, ainda mais baixo, porém com o bom e velho terno impecável de risca de giz e o jeito nervoso de falar e se mexer.

Raul não havia deixado de pensar por que ele fora escolhido pra receber o dinheiro, mas de certo modo isso ficara em segundo plano na sua mente ocupada com cálculos, negócios, compras e vendas, assinaturas de contratos e negociações de preços. Voltava a incomodá-lo de vez em quando, sempre quando conseguia relaxar. Voltava a ocupar alguns espaços de sua cabeça e dardejava por ali como um pássaro fraco que quer sair da gaiola, mas não tem forças. Nessas horas, se lembrava do seu chefe e sabia que era inevitável ele voltar. Mas acabava se esquecendo novamente, e, quando o momento finalmente chegou, ele percebeu que não estava preparado pra aquilo.

Convidou seu Andrade pra entrar e sentar. Os dois ficaram em uma troca de olhares constrangida por alguns segundos, enquanto Raul percebia como seu ex-chefe mantinha a velha pose. Ele era um homem grande, apesar de baixo. Não era gordo, mas era grande. Uma grandeza mais psicológica que física. Tinha postura, um olhar dominador, e um ar de autoridade, de quem tá sempre ocupado, o que era ressaltado por seus gestos e a fala sempre nervosos. Raul tentou se enxergar nele, mas não conseguiu. Era mais alto, magro e mais novo, mas nem de longe tinha aquela presença. Mesmo sentado naquele sofá velho, seu Andrade, de pernas cruzadas e as mãos sobre elas, parecia o dono, e Raul o funcionário. Mas dessa vez era o contrario. Ele era o dono, ele tinha o dinheiro – ele Raul, obviamente. Ou não?

- Seu Andrade – perguntou no velho tom baixo de voz – por que o senhor me escolheu pra dar aquele dinheiro?

O chefe olhou com olhos de falcão e deu um leve sorriso, como se já antecipasse tudo que viria.

- Justamente porque eu sabia que você cuidaria bem dele, exatamente como você fez.
- Como assim?
- Ora, ora, Raul – disse seu Andrade, se inclinando pra frente, na direção de seu empregado – Você sempre foi meu melhor funcionário. Eu sabia que podia contar com poucos naquela empresa pra manter o dinheiro a salvo. E sabia que você era o único que podia fazer muito mais. E veja! – ele fez um gesto largo, como se abarcasse o que sobrou do mundo – você fez! Você triplicou, quadruplicou a quantia que deixei com você.
- Deixou com?
- Claro! Você não achou que eu deixei pravocê, não é?
- Achei que tinha feito isso por causa do fim do mundo.
- E fiz. Claro que fiz. Você não percebeu a jogada de mestre?
- Não.
- Eu me retirei do mercado, dando a entender que temia o fim do mundo como todos os meus grandes concorrentes. Eu percebi que eles estavam falando sério e achei que se eu não entrasse na onda e permanecesse no mercado pra me aproveitar da situação, alguns deles iriam perceber a jogada e fazer o mesmo. Então, eu bolei toda aquela história pra poder deixar o dinheiro com alguém que eu sabia ter o mesmo espírito que eu, que eu sabia que não iria gastar tudo, mas que iria ser esperto o suficiente pra investir o dinheiro e criar essa fortuna.
- Mas eu pensei que o senhor... quer dizer... a sua esposa, filho, a sua família toda.
- Ora, mas isso fazia parte da encenação, não é mesmo? Inclusive não te avisar de nada. Afinal, tinha que ser perfeito! Eles todos sabiam disso. E estão todos bem e de volta. Quer dizer, a não ser o meu cunhado que... Ele era muito burro e... Mas isso não tem importância. O que importa é que você cumpriu seu papel e cumpriu acima das expectativas meu rapaz!

E seu Andrade estava quase segurando o rosto de Raul com as duas mãos nesse momento. Raul estava se sentido especial. Afinal de contas, alguém achava que ele valia algo, e o considerava capaz. E esse alguém era ninguém mais que seu Andrade!

- E o senhor quer o que agora?
- Ora, que voltemos a trabalhar juntos.
- Como sócios?

Nesse momento seu Andrade pareceu antever alguma coisa da qual não esperava, e seu largo sorriso vacilou um pouco, mas não o suficiente pra que alguém como Raul percebesse. Rápido como um falcão dando seu rasante, seu Andrade pulou para o sofá em sua frente, se sentando ao lado de Raul e colocando um de seus braços sobre os ombros deste. Raul sentiu até mesmo um certo estremecimento percorrer sua espinha: era como se ele fosse o novo preferido de seu Andrade, que nunca havia mais do que apertado a sua mão.

- Você sabe muito bem que sermos sócios incorre em termos de dirigir a empresa juntos, não é mesmo? E eu pensei que você não iria querer ter todo esse estresse em sua vida. Ah, porque é um estresse e tanto. Além disso, olhe bem pra nós, Raul. Você acha que coseguiria ser como eu e ser um chefe? Acha que conseguiria controlar aqueles empregados que são como aves de rapinas querendo rasgar nosso bucho a todo momento? Ah não! Com certeza não...

E Raul queria interromper seu chefe ali mesmo e lhe dizer que não precisava fazer isso, que ele seria o milionário viajando pelo mundo, enquanto seu Andrade seria o sócio que cuidaria de tudo. Afinal, ele havia construído aquela fortuna, ele sozinho havia feito todos os investimentos certos e negócios rendáveis, mesmo que fosse com o dinheiro inicial de seu Andrade. Mas ele não podia interromper o homem, pois ele falava como um imperador:

– Assim, como fui eu quem deu o dinheiro inicial que possibilitou você fazer tudo que fez, pensei que poderíamos voltar a ser como antigamente. Exceto, claro, que você agora deixaria de ser um mero contador pra ser o chefe do setor financeiro. Poderia mesmo empregar o Alfredo de volta só pra poder mandar nele, hãm? Hãm? O que me diz? Você gostaria de mandar naquele velhote sem vergonha, não é mesmo?

Ah gostaria sim, pensou Raul. Então ele seria o rei do pedaço. Seria o chefe do financeiro. O homem da grana. Todos o respeitariam e o olhariam com inveja. Ele reinaria na empresa, como nunca antes. Veja que maravilha. Veja que salto ele daria. Afinal de contas, seu Andrade tinha razão: ele não tinha vocação pra ser chefe. Não saberia o que fazer. Meteria os pés pelas mãos. Seria melhor assim. Voltaria a fazer o que sabia, ganharia um pouco mais, teria sua própria sala e mandaria no velho Alfredo (se ele não tivesse se matado também).

- Temos que redigir os documentos – ele disse.
- Ora não se preocupe. Eu já providenciei isso com meus advogados.

Nossa! Seu Andrade era mesmo muito eficiente. Ele nunca seria tão rápido assim no pensamento. O homem era uma fera e ele estava recém aprendendo. E o que era melhor, aquela homem o havia escolhido, e ele seria, a partir de agora, seu preferido. No fim das contas, dois mil e treze estava realmente começando muito bem pra Raul.

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Histórias do Fim do Mundo II

“Eu Também”

“Caralho! que calor do inferno. Já faz dois dias que chove e mesmo assim o calor não para! Pior. Só piora! Tá mais quente ainda, se é que é possível. A merda do sistema de energia foi pro pau e eu to sem ar-condicionado. A bateria do meu note tá acabando eu ainda não terminei de arrumar esse maldito site. É pra fuder. O mundo não acabou, to sem dinheiro, só um cliente não cancelou pedido e eu não vou conseguir entregar esse merda porque falta luz desde ontem. Caralho! que foto podre é essa? Vai se fuder, pati dos diabos! Parece uma puta! Como é que eu sou amiga de uma loca dessas? Ah! Claro! Amiga da Arlete. Só podia. Aquela lagartixa podia ter saído da minha vida por completo. Ah vou mandar a merda! Por que não faltou luz no prédio do Zuckerberg e essa bosta de Facebook não saiu do ar? Por que a internet ainda funciona? Será que só nesse fim de mundo de cidade é que não tem mais luz? Cadê as tais tempestades solares que iam deixar os sistemas de informação em colapso?

Foda-se! O mundo não acabou, um monte de gente se matou, uma chuvinha de dois dias tá deixando o resto apavorado e eu to aqui, presa nesse apartamento chinelo, sem ar, sem geladeira pra gelar minha vodka, sem limão, sem aquela vadia que foi embora porque não queria passar os últimos dias de sua vida comigo. Tomara que tenha morrido aquela lagartixa sem rabo! Tomara que tenha sido esmagada antes do rabo crescer. Onde eu tava na cabeça pra pedir pra ela morar comigo?

Preciso de um cigarro. Espero que isso ainda tenha. Puta que pariu! Nem cigarro?! O mundo não acabou, mas parece que acabou! Antes tivesse tudo ido pro espaço. Pelo menos essa merda não continuava. Como é que eu vou fazer? Descer pra comprar cigarro onde? Será que algum armazém tá funcionando? Daqui não dá pra ver nada... essa chuva maldita! São três horas da tarde de segunda e nenhum carro na rua. Parece que eu to no meio do apocalipse zumbi. Bem que podia ser. Bem que eu podia encontrar aquela lagartixa sem rabo transformada num bicho daqueles. Queria ter o prazer de enterrar um machado na cabeça dela, como se fosse um melão. Era mais vazia que um melão. Ai linda, tu não devia deixar esse cabelo assim. Tu vai parecer uma machorra. Caralho sua puta burra! Eu sou uma machorra! Não tá vendo? Namora comigo faz três anos, veio morar comigo e ainda não percebeu que eu sou uma machorra? E para de usar esse tu de merda pra parecer que é porto-alegrense. Tu é de Soledade, vaca desmiolada!

Cruzes! Como é que eu to tão irritada assim? São só lembranças. Só? Hum... Eu definitivamente preciso de um cigarro. Vou descer e que se foda!

Ah! Essa chuva quente não dá nem pra se molhar nela, parece mijo. Queria que os maias tivessem acertado pelo menos metade e meio mundo tivesse sido destruído. Cidadezinha de merda como essa podia ter ficado debaixo d’água. Cachorro burro sai da rua, vai ser atropelado! Puf! Por quem? Nem carroceiro tá na rua hoje. Porra! Nem o armazém do seu Juarez tá aberto. É pra fuder! O veio é o único que abre em feriado, com tornado, maremoto, na segunda vinda de Cristo... o velho não perde a chance de faturar um. Se nem ele abriu hoje, não vou conseguir cigarro. Ai merda! merda! merda! Por que é tão difícil conseguir só um cigarro? O mundo não acabou porra! O que tu tá olhando mendigo dos infernos? Vai catá lixo e me erra! Não posso mais gritar na rua?

Ai! Que pilha de nervos. Será que eu to na TPM? Ideia estúpida parar de marcar só porque o mundo tava pra acabar. Nem eu escapei dessa crença do caralho. Devia ter continuado tomando pílula. Acho que vou no Zaffari da Lima. Preciso de uma farmácia! Preciso de um cigarro! Preciso da energia! Preciso trabalhar e ganhar dinheiro! Preciso... aí que dor! Puta que pariu! O que tá acontecendo comigo? Se pelo menos eu conseguisse chorar...

No fim das contas... quem ia querer morar comigo desse jeito? Ela era a única que me aguentava afinal. Se não fosse a desmiolada que era, não teria me aguentado. Ela deve ter cigarro em casa. Sempre tinha. E pílula também. Ah! Ela certamente sabe seu eu to na TPM. Sempre sabia meu ciclo. Não posso fazer isso. Não vou fazer essa merda. Imagina se chego lá e me dizem que ela se matou?...

(Vou ir até o Zaffari. Eles devem ter gerador próprio)

... É bem capaz dela ter feito isso. Bem coisa dela. Mas e se chego lá e ela tá em casa? Oi, me vê um cigarro? Sabe se eu to na TPM? Quer trepar?
Ai que ódio! Eu não posso tá pensando essas coisas. Não com ela. Eu odeio ela. Quero enterrar um machado naquela cabeça se ela for um zumbi. Droga! Eu nem tenho um machado. Não tenho cigarro, ar-condicionado, limão, a vodka não tá gelada, a cidade tá parada, não tenho mais aquela lagartixa sem rabo....

Por que digo isso? Ela tinha um rabo tão lindo. Que bundinha mais lisa e empinadinha. Tão boa de morder.

Porra! O que eu to fazendo aqui? Eu devia ter ido pro Zaffari. Como vim parar aqui? Merda! merda! merda! Agora o que eu faço? Toco a campainha? Não. Não tem energia. Vou embora. Mas ela deve ter cigarro. É só por isso que eu vim. E pra saber o ciclo. Isso. Só por isso. Peço, pergunto e vou embora. Pronto.

Ai merda! Eu devia ir embora... Agora foda-se! Alguém já ouviu e vem vindo.

Oi Arlete... como você tá?... Pois é, né? O mundo não acabou no fim das contas. Que bom que você não se matou... O que? Não, eu não pensei que. Bem um pouco, talvez. Você era. É meio dramática... O que? Pois é não sei. Não falei com ninguém da galera ainda. Não sei se alguém se matou ou não. Acho que ninguém foi se encontrar lá na frente ontem. Eu tava indo pra lá vê se tá aberto. Mas pensei. Bem. Sei lá. Será que você tem um cigarro pra me conseguir? To sem nenhum e não tem nada aberto. Ah, obrigado... Então você tá bem mesmo?... É, eu sei. Não devia ter te dito aquelas coisas. Mas você também não precisava ter me dito que queria me deixar bem na véspera do fim do mundo... Não interessa Arlete! Três dias antes já é véspera!... Aí! Você sempre me aturou assim... Tá! Tá bom! Escuta! Vamos parar por aqui. Não quero que você chore na minha frente... Porque eu fico com vontade de te abraçar e te beijar e aí vai me dar vontade de trepar... Merda Arlete! Eu sempre usei essa palavra... Porque eu não consigo dizer “fazer amor”. Mas não quer dizer que quando eu dizia trepar ou fuder não tinha amor. É só uma questão de palavras... Tá bom Arlete! Eu vou embora! É melhor assim. Obrigada pelo cigarro. Vê se se cuida. O mundo não acabou, mas parece que só sobrou o inferno.

Ufa! Um cigarro! Até a chuva parece refrescar mais. Ah! Agora essa porra de armazém abriu. Vou logo comprar um estoque de cigarros. E limão.

Olha só. Um carro na rua. Parece que o mundo resolveu sair de casa. Quem sabe se não para de chover, só pra variar? Tá. Também foi pedir demais. Merda! Não quero nem pensar subir esses cinco lances de escadas agora. O que? Luz? Sério? Puta que pariu! É eu dar uma volta na rua e as coisas parecem voltar ao normal!

Ai que maravilha! Ligar meu ar. Fumar. Gelar minha vodka! Ai meu sofá!

Caralho! Eu disse que era com “amor”. Eu usei a palavra “amor”! Amor! Puta que pariu! Ela vai achar que... Eu disse isso? disse? O que ela vai achar? O que vai passar por aquela cabecinha vazia? Ela certo que vai... ah ela vai! Caralho! O que eu fiz? Será que?... Parece que sim. Mas...

Foda-se! Vou trabalhar. Agora eu consigo terminar essa merda.

Ai caralho! O telefone! Onde ficou essa porra? Já vai! já vai! Já vai! Cadê essa merda!? Ah!

Alô? Oi... Vir aqui? Mas eu acabei de sair daí... Ai meu Deus Arlete! Não me entenda mal, mas não foi bem isso que eu quis dizer. É que, nós tinha algo legal, mas... você sabe que era carnal, não era?... Eu sei que eu disse, mas... sim, mas... eu sei que... Tá. Tá bom! Escuta... Me escuta! Você lembra do meu ciclo menstrual? Lembra!? Ótimo! Você não quer passar numa farmácia e me trazer uma pílula? Daí a gente conversa. Vem de noite que agora eu preciso trabalhar. Tá bom. Beijo. Eu também.

Bom... Pelo menos vou ter sexo essa...

Caralho! Eu disse “eu também”? Puta que pariu o que será que ela vai pensar? Eu disse “eu também”?... Porra! Eu disse "eu também".

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Histórias do Fim do Mundo I

O Último Amor

- Sou uma stripper. Não vou fazer sexo com você – ela já foi logo avisando.

Mas eu devo avisar que ela fez. Ela não lembrava bem ao certo como acabou cedendo. Talvez tenha sido no momento em que ele disse que queria apenas ver um “belo” corpo de mulher na sua frente uma última vez, com um ar meio melancólico – e sim, ele usou a palavra “belo”; homens que ela conhecia não usavam essa palavras, a não ser se referindo ao cantor de pagode. Pra ser mais exato, talvez tenha sido a fala completa dele, que disse que também não sabia se o mundo ia mesmo acabar ou não, mas que se acabasse, a única coisa que queria era ouvir uma única boa música, beber uma única boa cerveja e ver um único belo corpo de mulher. Achou que ele parecia ser um cara bacana. Um homem chegando na meia idade, corpulento, cabelos ainda espessos, embora já branqueando. Tinha um ar de saudade em seu sorriso simplório e um certo olhar de mediocridade nos olhos desejosos. E parecia mesmo boa gente.

Mas no fim das contas pode ser que não tenha sido nada disso. Apenas teve vontade de preencher aquele vazio com alguém que não iria a abandonar por uma mera profecia idiota.

O fato era que transaram e foi realmente bom pra ambos. Os dois se olharam um tanto envergonhados, mas satisfeitos. Não havia sorrisos, mas cumplicidade. Ela vestiu o sutiã e a calcinha, mas parou por aí. Ele vestiu sua cueca e foi até a geladeira.

- Quer uma cerveja?
- Pode ser.
- Pensei que não bebia em trabalho.
- Também não transo com clientes.
- Mudou por causa de amanhã?
- Não. Quer dizer. Não sei. Obrigada. Acho que pode ser, mas não porque acredite nessa história.

Ele ficou olhando pra ela, pensativo, como se quisesse decifrar alguma coisa na fala dela. Se sentiu envergonhada, baixou os olhos e bebeu. Ele deu um meio sorriso e voltou a sentar na poltrona.

- Não sei se o mundo vai acabar ou não. Acho que não é uma questão de saber. É mais de acreditar. E eu não acredito. Mas não faz mal nenhum querer ter um possível último dia feliz caso aconteça. Não é isso?

Ela voltou a olhá-lo. Não entendera bem a pergunta. Não sabia se ele estava querendo apenas que ela concordasse com o raciocínio dele, ou se queria saber se ela sentia isso também. Nunca fora boa em conversar. Nunca gostou de manter diálogos profundos com as pessoas. Não as sabia interpretar direito. Optou pela segunda opção.

- Não. Acho que comigo é diferente. Não acredito e sei que não vai acabar. Mas isso me afetou de um jeito ou de outro. Então, fiquei meio deprimida igual.
- Sei bem como é – ele disse, olhando de soslaio pra sua mão esquerda. Foi uma olhadela rápida, tentando ser discreta, mas ela, de alguma forma, percebeu – estava atenta a ele. Porém, não havia nada naquela mão – desistiu de pensar que fosse algo.
- O que você faz? – ela perguntou tentando criar uma conversa que acabasse com a estranheza do momento.
- Vendo produtos de limpeza.
- Desde sempre?
- Não. E você?
- Não... (deu uma pausa, bebendo um longo gole) E não quero que seja pra sempre.
- O que você quer?
- Ser advogada. Trabalho pra pagar a faculdade.
- Você já tem uma?
- Sim. Mas faço muito devagar. É muita coisa.
- Tentei estudar medicina. Mas não consegui trabalhar e estudar.
- É frustrante?
- Foi melhor assim.
- Se realmente acreditasse que iria acabar, pra onde iria?
- Aquele lugar em Goiás. Você sabe?
- Sim. Sim. Ouvi falar – ela disse essas palavras com certo desgosto.
- Muitas pessoas foram pra lá.
- Muitas.

Ela se levantou, dando a ele a chance de olhar mais uma vez pra aquele corpo firme, de pele lisa e sedosa. Tudo pequeno, mas na medida certa. Nossa! Como ele sentiu saudades de um corpo assim. Ela mexeu no parelho de som, tirando o seu mp3 e guardando na bolsa ao lado, e não percebeu que ele novamente olhara para sua mão.

- Quero ver o que vão fazer quando tudo voltar ao normal.
- Vai voltar?
- Se não acabar, volta.
- Que CD é esse? – ela voltara a mexer no aparelho.
- Ah. Tá aí há alguns dias é...

Ela apertou o play e ele desistiu de responder. Um violão começou a tocar. Para muitos aquela melodia era impossível não reconhecer. Ela, no entanto, não sabia. Esperou a introdução. Era um tanto longa. Outro violão entrou fazendo um solo. Era triste. O primeiro tema continuava. Finalmente ela pareceu reconhecer. O cara começou a cantar. Ela conhecia de algum lugar. Certamente já havia ouvido e lembrava alguém. Mas não sabia o que era.

- O que é?
- Pink Floyd.
- A música?
- Wish You Were Here.

Ela conhecia, mas não sabia de onde. A letra era linda, mas triste. Ficou imaginando porque aquele era o CD que estava ali há alguns dias. Será que aquela era a única boa música que ele queria ouvir? Se era, achou que ele também tinha alguém. Não quis perguntar, mas ficou olhando pra ele, enquanto ele ficava encarando o chão, batendo a mão direita no braço da poltrona e sacudindo a perna no ritmo da música. Desejou perguntar, mas era ele quem geralmente tomava as iniciativas, então esperou. Esperou que ele perguntasse por que ela também estava triste com a música. Talvez pudessem se ajudar. Mas ele não disse nada.

Ela então olhou a sua volta, devastando a pequena sala do apartamento, e não viu nenhuma fotografia por perto. De repente, ele estava olhando pra mão esquerda novamente, mas talvez fosse porque segurava a garrafa de cerveja com ela. A música entrou no seu final, mas antes que aquele clima bom acabasse ela falou:

- Acho que acabaria não indo pra lá. É bobagem.
- Hã? Ah… sim. É. Talvez seja.
- Queria que fosse o primeiro lugar destruído.

Ele riu. Melhor, sorriu. Olhou pra ela e disse:

- Seria engraçado.

Mas não foi como se estivesse achando somente engraçado, e sim como se achasse que realmente valia muito a pena rir disso, e, por isso, valeria a pena que acontecesse.
A música acabou. Ela foi até suas roupas, pensando em o que faria amanhã quando tudo voltasse ao normal. Ele se levantou e pegou algo em cima da cômoda. Ela não viu o que era.

- Caso precise de algum produto de limpeza. Pode me ligar.
Ele lhe entregou um cartão, com a mão esquerda. Ela olhou pra ela e viu. Deu um meio sorriso de cumplicidade, mas recusou.

- Obrigada.

domingo, 16 de dezembro de 2012

Histórias do Fim do Mundo

Atenção pessoal. Como o fim do mundo está chegando, reservei para essa semana que se inicia amanhã, e que é para ser a última da nossa história, um especial Histórias do Fim do Mundo. Cada dia, até sexta, teremos uma história nova que se passando no pré ou pós apocalipse.

O Terreno Baldio da Adolescência - Parte VII

Então, depois de tudo, ou melhor, quase nada, que aconteceu na sua vida, Pedro parece ter feito alguma coisa. Chegamos a parte final da história e iremos descobrir se ele realmente encontrou um rumo.
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No dia seguinte ocorreu nosso festival. Não estava lotado, mas tinha bastante gente. Muito mais do que eu esperava. O suficiente pra atrair o tio do cachorro quente e o tio da pipoca pra entrada do terreno. O Ripa circulou com um isopor vendendo cerveja, refri e água.

A banda do meu irmão abriu e eles se comportaram. Tocaram só Ramones e até um Offspring das antigas que eu até aturava. Depois veio os parceiros com Led Zeppelin, Neil Young e Jimmy Hendrix. Eles colocaram o pessoal pra sacolejar. Até mesmo as amigas da Rosana estavam balançando os longos cabelos, e olha que elas não eram desse tipo de som. Rolou até AC/DC, Van Halen, e uma loca cantou Joplin. O Tito e sua banda deixaram todo mundo arrepiado com o B.B.King. Eles eram mesmo muito bons.

Daí foi a nossa vez. Tocamos Lynyrd como nunca antes. E foi maravilhoso. Ver aquela galera delirando ao som de Call Me The Breeze foi muito foda. E eu imaginei o Dumas lá em cima batendo cabeça e chamando a galera de túnica branca pra quebrar tudo. Encerramos, claro, com o hino de todos os roqueiros que partiram dessa pra melhor: Free Bird. E eu só não tive um treco porque tinha que me concentrar na batera. Mas foi muito emocionante. Isso até fez a banda voltar a sentir o que era fazer show e querer voltar mais a ativa. Combinamos de voltar a nos reunirmos para tentar achar mais horários pra shows.

O festival ainda teve algumas falas de gente importante, a Diva, o Tito, alguns amigos mais velhos do Dumas, todos lembrando o cara. Terminou tudo lá pelas sete, e como era horário de verão, desmontamos e limpamos tudo antes de escurecer.

Depois, o pessoal da organização foi pro Penelope, onde a Diva tinha preparado uma janta pra gente. Comemos, bebemos e descansamos enquanto riamos e comemorávamos o sucesso. Estávamos um mais cansado que o outro, mas muito realizados. Daí eles começaram a me agradecer e me homenagear pela idéia e pela iniciativa. A Diva até me abraçou emocionada e disse que o Dumas ficaria muito feliz, apesar de que iria xingar todo mundo e tentar disfarçar. Nós rimos. Eu disse que aquilo tudo tinha que ser agradecido à Rosana, e ela ficou toda sem jeito. Eles brindaram a ela, e agora minha namorada já fazia parte da turma também.

Foi só depois disso que minha vida mudou. O meu texto foi publicado no site, e eu fiquei conhecido na cidade por causa do festival. Comecei a cursar jornalismo, criei um blog de rock especializado em southern rock e a banda voltou a fazer shows. Eu criei uma espécie de sarau no Penelope, toda quinta. Misturando música, cinema e literatura. Claro que a Rosana me ajudava muito, porque ela já tinha lido mais do que eu, e porque ela conhecia o pessoal do teatro e podia trazer aquelas performances e tal. E todo esse trabalho nos deixava cada vez mais juntos.

Hoje, estou com vinte e oito, quase formado, mas já tenho um programa de rádio, meu blog faz sucesso e ainda escrevo pro jornal da capital de vez em quando. Claro que tive de abrir meus horizontes musicais, mas nunca disse que não conhecia outras coisas, apenas não curto. Além disso, saí da casa dos meus pais. E adivinha onde eu moro? Isso mesmo. No terreno baldio. Comprei da prefeitura e construí minha casa lá. Dessa vez eles deixaram porque tinha projeto bonitinho até assinado por arquiteto. Rosana e eu vamos nos casar ano que vem, e já estamos planejando nosso primeiro filho. E no final de tudo, eu realmente tinha de seguir o velho e bom conselho: ache uma mulher e seja um homem simples.

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Pois é pessoal. Parece que no meio dessa bagunça e prolixidade Pedro conseguiu contar sua história. Se conseguiu dizer alguma coisa, não sei. Vale lembrar que esse último parágrafo foi anexado à história três anos depois de ele a ter escrito. Segundo o que me contou, fez isso porque, relendo o texto, achou que faltava um final. Como não conseguia encontrar um final mais "literário" (não sei o que ele queria dizer com isso), acabou apenas escrevendo o que aconteceu com ele depois do ano de 2007.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

O Terreno Baldio da Adolescência - Parte VI

Eis que chegamos a penúltima parte da história. Após sofrer relembrando a queda do avião da sua banda preferida, descobrir que seu irmão virou emo, perder seu grande mentor e, finalmente, sair com a garota por quem estava apaixonada, será que a vida de Pedro vai começar a fazer sentido? É o que vamos ver agora.
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O mês de novembro chegou e com ele nossa relação atingiu um novo nível. Finalmente dormimos juntos, e foi ótimo. Realmente muito bom pra primeira vez. Pra primeira, segunda e terceira, porque a primeira noite juntos tinha que colocar pra quebrar. Depois da última, caímos exaustos na cama dela e ficamos abraçados.
- Você tava realmente a fim. Ela disse.
- Depois dessas semanas de espera. Não que eu esteja reclamando. Eu concordo contigo que é bom esperar pra ter a primeira transa, se a gente quiser que dure.
- Ah. Você acreditou nessa desculpa?
- Desculpa?
- Eu tava menstruada e não queria dizer, bobinho.
- Ah. Mesmo? Então a história de querer que dure.
- Isso é verdade. Mas eu não sei se acredito que tenha que esperar pra transar. Você acredita ou tava só concordando comigo?
- As duas coisas - eu respondi e a enchi de beijos.

As coisas estavam ficando muito bem entre ela eu. Combinamos de, na escola, manter em segredo nosso namoro, pelo menos por enquanto. Não tinha realmente muito problema, mas ela queria esperar um pouco porque não fazia nem um ano que ela trabalhava lá. Achei válido.

Parecia que as coisas estavam melhorando, e estavam mesmo. Mas ainda tinha algo que me preocupava. Era a minha faculdade. Eu estava realmente tentando achar um jeito de gostar do que eu estava fazendo e de me ver como um professor no futuro, mas não dava. Rosana também percebeu que eu estava incomodado. Ela tentava me ajudar, dando algumas dicas e conselhos, mas nada estava resolvendo. Até que certo dia ela me disse algo que me abriu os olhos. Não só pra eu resolver mudar, mas pra uma outra idéia genial. Foi um dia em que estávamos conversando sobre música, e eu comecei a expor minha teoria sobre o rock. Eu achava que como o rock havia sido inventado nos Estados Unidos, sua língua natural era o inglês. O que combinava com sua musicalidade era essa língua e nenhuma outra.

- Por isso só da certo banda que toca rock em inglês. Mesmo que não seja americana – eu concluí. Tudo porque ela estava tentando defender o rock nacional. – Não estou dizendo que rock em português não seja bom. Mas só o Raul e olha lá. Acontece que não combina a língua com o ritmo.

Como ela ainda não parecia muito convencida, pois achava que Engenheiros, Legião, TNT, Garotos Podres e Ira eram muito boas e eram rock, eu continuei:

- Veja o samba e a bossa nova. Não foram inventados no Brasil? Então, combinam com o português. Mas tenta cantar em outras línguas. Por isso que fica horrível aquelas versões em inglês da Garota de Ipanema.
- É. Talvez... – Ela disse e ficou pensando um pouco. E depois de alguns segundos de silêncio – Nossa!
- O que? – eu perguntei intrigado com o olhar dela pra mim.
- Você gosta tanto de falar sobre música. E também conhece tanto sobre. Por que não investe nisso?
- Já disse que a gente desistiu de ser músico profissional.
- Mas não precisa ser músico profissional. Você pode ir pra área da comunicação. Larga história e vai fazer jornalismo. Quem sabe vai pra área cultural. Você gosta tanto de cinema também. Quem sabe você consegue até ter um programa de rádio. Um blog.
- Será? Parece legal. Mas trocar de curso assim? Com vinte e cinco anos?
- E daí? Vai se formar primeiro pra depois querer mudar? Você não curte o que tá fazendo.
- Isso é verdade. Vejamos: começo ano que vem. Com uns vinte e nove, trinta me formo. Mas como não precisa de diploma pra começar a trabalhar na área, posso até começar agora. A idéia do blog é boa.

Ela sorriu com minha empolgação, me beijou e foi terminar de tirar a mesa. Eu fiquei alguns minutos pensando, e já me via fazendo um monte de coisas legais envolvendo música. Foi quando eu tive a segunda idéia. E ela me colocou de pé. Eu olhei pra Rosana, sorri, dei um beijo nela e disse:

- Você é um gênio. Casa comigo.

Ela ficou espantada olhando pra mim, mas eu logo já saí e fui telefonar. Tinha que começar a por minha idéia em prática. Saí de lá cantarolando “To everything, turn, turn, turn There is a season…”, a nova música do meu despertador.

Vocês têm que saber que eu não tinha esquecido aquele meu plano de homenagear o Dumas. Logo depois que eu comecei a namorar, inclusive, a idéia continuava lá e tomava mais força. Cheguei a rabiscar um projeto e falei com um amigo do meu pai, que trabalhava na prefeitura, mas ele me desencorajou. Disse que não tinha nenhum lugar na cidade pra se fazer esse tipo de coisa. E que isso exigia investimento. Mesmo os caras da banda curtiram a idéia, mas acharam que era loucura. Ninguém estava me entendendo. Talvez eu estivesse expondo a coisa de forma errada. Eu não pensava em uma coisa megalomaníaca, mas um festival simples e divertido.

Quando Rosana me convenceu que eu devia tomar uma atitude quanto à minha faculdade, eu também percebi que nesse caso havia uma solução. A idéia nasceu de uma forma inesperada, mas era óbvia. Peguei meu celular e liguei pro Ripa, porque sim, apesar de tudo, nós ainda mantínhamos contato com aquele pobre coitado. Por incrível que pareça ele trabalhava em uma serraria (sim, eu sei que parece um clichê ridículo, mas não posso fazer nada, é a vida real) e não tinha o menor escrúpulo em nos ajudar. Falei com o resto do pessoal, e eles curtiram.

Duas noites depois, só dava cabeludo e ex-cabeludo passando com madeira nas costas, saindo da serraria e levando pro terreno baldio da minha rua. O Diógenes usou a Kombi e eu o fusca. No dia seguinte, cortamos um pouco da grama do lugar e deixamos as madeiras escondidas pra montar o palco no sábado.

Essa era minha idéia: iríamos fazer o festival em homenagem ao Dumas ali mesmo, naquele terreno emblemático. O único lugar do mundo que poderia receber uma verdadeira homenagem ao Dumas. Se havia algum canto naquela cidade que podia se sentir digno da podreira rock and roll do nosso amigo, esse lugar era o terreno baldio.

Eu descobri que o terreno pertencia à prefeitura e fui até lá expor minha idéia. Recebi um não e uma cara feia, um não e duas caras feias, um não e três caras feias, nessa respectiva ordem em cada instância. Fiquei fulo da vida e larguei um: “Puta que pariu ninguém sabe respeitar a memória de um ícone nessa merda de cidade?” Acabei saindo de lá sob olhares reprovadores, e com o segurança já com a mão no cassetete. Mas já estava resolvido que sairia essa homenagem de um jeito ou de outro. E como nos fins de semana nada naquela porra funcionava, nem mesmo a vigilância pública, marcamos o festival pra dois domingos antes do natal.

Conseguimos que nossa banda tivesse três guitarristas e um tecladista, e iríamos tocar Lynyrd. Teria mais uns amigos que iam tocar Led, Neil e Jimmy. E de última o Tito ainda disse que vinha com uns amigos tocar B.B. King.

No sábado, enquanto montávamos tudo, meu irmão viu aquela função no terreno da rua e veio me pedir o que estava acontecendo. Não precisava ser muito esperto pra entender o que estava acontecendo, e ele achou aquilo o máximo. Pediu se a banda dele podia tocar. Eu perguntei se eles sabiam tocar alguma coisa que fosse rock de verdade. O problema dessa gurizada nova é que, além de serem uns bostas, são uns bostas com orgulho, porque ficou todo ferido com a minha pergunta dizendo que aquilo era preconceito e tal. Eu nem me estressei. Virei as costas e voltei à função. Mais tarde ele veio todo sentido me pedir desculpas e dizer que a banda sabia tocar Ramones. Sim. Toda banda sabe tocar Ramones. Achei que pelo menos podia ajudar a aumentar o público e disse que eles tinham que trazer gente. Ele ficou todo faceiro, e por um momento achei que ia me abraçar, essas sentimentalidades de emo, mas apenas sorriu e saiu. Eu ainda gritei pra ele: “O primeiro acorde emo que ouvir vamos cortar os dedos de vocês!”

Mas ele apenas fez um ok com o dedo e continuou o caminho.

Sábado à noite estava tudo pronto, e no domingo seria o festival. Na segunda tudo já estaria desmontado, e ninguém na prefeitura iria ficar sabendo de nada. Pedi pra Diva fazer uma propaganda no Penelope só no sábado à noite porque divulgação com tempo de antecedência levantaria suspeita. Todos nós combinamos de avisar o máximo de gente possível, e até mesmo a Rosana prometeu trazer umas amigas.

Ela mesma estava bastante orgulhosa de me ver envolvido em algo daquele jeito. Eu disse que ela ia ficar mais orgulhosa ainda quando visse outra coisa e mostrei pra ela um texto que eu tinha escrito, falando de algumas bandas de rock e homenageando o Dumas. Eu ia entregar pro Tito pra ele ver se conseguia publicar num site de rock famoso que ele tinha contato. Ela ficou realmente feliz, e, véio, eu não posso descrever a noite de sexo que nós tivemos. Nossa!

No dia seguinte ocorreu nosso festival...
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Olha só! Não é que o namoro fez bem ao nosso amigo? Ele finalmente agiu, saiu da inércia em que se encontrava sua vida e fez algo que preste. Será mesmo que prestou? Na próxima e última parte veremos como foi o festival, as consequências dele na vida de Pedro e o fim de sua história. Até lá.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

O Terreno Baldio da Adolescência - Parte V

Então, será que o fantasma de Dumas ajudou Pedro em alguma coisa? É o que vamos descobrir agora.
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Até que certo dia, passado o abalo da morte do Dumas, eu estava usando uma camisa do Led, e ela me pediu se eu ainda acreditava no rock. Daí tive que ser bem ortodoxo e enfático: subi na mesa da minha salinha e recitei olhando pro horizonte com ar de profeta: “My my, hey hey, rock and roll is here to stay. The king is gone but he's not forgotten, Hey hey, my my, rock and roll can never die”. Olhei pra Rosana e ela estava com brilho nos olhos. Era o amor.

Tá. Vamos ser sinceros. Isso até passou pela minha cabeça, e eu mesmo me vi fazendo, mas acabei me controlando. Só olhei pra ela com ar nostálgico e disse: “rock and roll can never die, baby”. Ela riu. Não por causa do “rock and roll can never die”, mas porque nunca tinham dito “baby” pra ela daquele jeito (com piscadinha e tudo). Primeiro achei que aquilo era só uma constatação, mas depois ela deu um sorrisinho e olhou pra baixo. Então, pensei: Opa! O sinal! Bem aquele tipo de sinal que as mulheres dão, e que tu tem que ser muito ligado pra não perder, porque são rápidos e discretos. Daí que, sem nem pensar direito, eu lasquei se ela ia fazer alguma coisa sexta de noite. Foi bem assim mesmo. No susto. Primeiro ela pareceu gostar e disse que estava livre. Mas depois ela ficou meio se fazendo. Dizendo que não sabia, que a gente era colega de trabalho e tal. Eu tentei enrolar dizendo que era só como amigos e tal. Tentei ser engraçado: “eu sou da teoria que onde se ganha o pão não se come a carne” (puta piada ridícula na pior hora). A sorte foi que ela pareceu não ouvir direito e fez um “hã?”. Aproveitei e remendei com qualquer coisa: “coisa de amigos. Você me deve um chopp, mesmo”. Nessa história de remendar, acabei indo a reboque de qualquer coisa. Mas deu certo porque ela pareceu sossegar e retrucou: “você é que me deve um chopp. Lembra? Apostamos o resultado do jogo do Grêmio” (era verdade. E a mina ainda curtia futebol!).

Ficou combinado pra sexta às oito. Eu escolhia o lugar. Falei de um bar na cidade aqui do lado, uns vinte minutinhos de carro. Porque aqui na cidade só o Penelope, e lá era muita gente conhecida pra ficar me atrapalhando. E o Penelope não é bar com clima pra azarar mulher do tipo dela (isso eu achava antes de a conhecer melhor). E tinha toda a história do Dumas. O outro bar ia ter a banda de um conhecido. Eles tocavam de tudo, e o lugar era mais o estilo. Depois da meia noite podia ir pra pista, onde podia rolar um clima quando tocasse uma mela cueca dessas. Além disso, me dava a chance de fazer uma seleção de músicas pra ir ouvindo na viagem. Isso podia me ajudar a preparar o terreno de um jeito bacana.

Fiquei meio nervoso naqueles dias. Fazia tempo que eu não entrava nesse clima de conquista, e a Rosana era diferente do tipo de mulher que eu namorava. A minha primeira (e única por sinal) namorada, Érica, era uma roqueira porra loca que curtia transar ao som de D’yer Mak’er ou de Since I’ve been loving you, quando estava chapada. Não vou dizer que não foi um bom namoro, até porque foi o primeiro, mas ela gostava de pintar as unhas do pé de cores escuras, e eu não curtia muito isso. Já a Rosana era divertida e, às vezes, meio doidinha, mas mais nesse estilo do pessoal do teatro, assim, meio alternativa.

Me mantive ocupado gravando uma coletânia pra viagem. Isso me distraia, acalmava e me fazia pensar em assuntos pra noite. Comecei com Midnight Rider, do Allman Brothes porque é a minha preferida pra dirigir à noite. Daí tinha que vir o Véio: Dreamin’ Man, que é linda e romântica. Mas pra não deixar ela assustada com aquele clima, lasquei Loving Cup, do Rolling Stones em seguida. O ritmo mais animado e a letra mais disfarçada, além do que Rolling Stones sempre gera muito assunto pra além da música deles. Não dava pra demorar sem Led; duas de vez: Going to California e Tangerine. A primeira mais fantasiosa, mas o clima era legal, e a segunda eu podia falar do cabelo dela. Ia ser divertido. Quando viesse Most of The Time, do Bob Dylan, estaríamos chegando. Eu poderia até puxar assunto do filme Alta Fidelidade e indicar o livro, pra parecer um cara com cultura.

Pra volta reservei as mais cascudas. Caso não tivesse rolado nada ainda lá no bar, eu podia começar a ser mais incisivo. Caso já tivesse rolado, daí tudo ia tá no clima mesmo. Começava com Golden do My Morning Jacket e seguia com She Talk to Angels, do Black Crowes, pra mim uma das baladas mais lindas do rock dos últimos tempos. Duas bandas mais atuais pra o fusca não parecer um museu ambulante por fora e por dentro. Mas voltamos ao Led: Thank You, que já era pra dar uma escancarada. Mais uma do Bob, Buckets of Rain que é bonita e tem uma letra a primeira vista singela. Bom, ela não ia tá prestando muita atenção mesmo. Então, Crystal Ship, do Doors, que tem uma dos trechos de piano mais lindo da história: curto, mas encantador. O suficiente pra amolecer qualquer coração. E fecha com eles: I Need You, do Lynyrd. A letra dessa já era pra deixar as coisas bem claras, e me dar coragem de falar pra ela a verdade caso tivesse tido medo durante todo esse tempo.

Na verdade, eu tinha preparado uma coletânea pra me declarar, isso sim. Talvez fosse até exagero pra um primeiro encontro, mas agora foi. Era sexta de tarde, e eu tava com a gravação pronta. Tentei colocar na minha cabeça que, apesar das músicas, eu devia me controlar e tentar não me declarar assim, de vez. Deixar as coisas rolarem, e começar só com um beijo pra depois ver como ia ser.

À noite, quando cheguei na frente da casa dela, ela usava aqueles vestidinhos que eu não sei dizer o material, mas que eu adoro quando elas usam porque cobrem até o joelho e são meio justos até a cintura e ficam soltos depois, e te deixam perceber as curvas da menina. E quando a saia encosta um pouco mais no corpo deixam adivinhar os contornos que tem ali por baixo. Eu fico louco porque você não vê, mas a simples insinuação deixa sua imaginação doida. E não dava pra negar que o corpo da pequena era bem interessante. Morava sozinha e gostava do meu fusca tanto quanto eu. Ou seja, tinha a simplicidade que uma mulher que namora um roqueiro precisa ter.

É claro que nada do que eu tinha imaginado aconteceu. As músicas nem fizeram o efeito esperado porque ela estava mais interessada em conversar do que ouvir o que tocava. Quando ela entrou já estava rolando a primeira. Na segunda, ela apenas fez balançar a cabeça no ritmo da música, o que me deixou desesperado pra agarrar aquela pequena e a encher de beijos. É claro que quando tocou Rolling Stones a gente falou sobre a banda. Ela se impressionava como eles conseguiam sobreviver por tanto tempo, e eu disse que achava a faze mais moderna deles nem tão boa. Em Going to California ela estava tão empolgada contando como tinha decidido fazer teatro apesar do seu pai querer que ela fizesse odontologia, que nem prestou muita atenção. Mas em Tangerine ela deu uma risada e eu quis saber por que, mas ela disse pra eu esquecer. Não tive como me segurar e comentei do cabelo dela. Ela gostou da comparação. Quando Most of the time começou nós já estávamos na cidade vizinha, procurando chegar no bar, mas ela se interessou. Falou que nem parecia Bob Dylan quando eu disse o que era e lembrou que tinha ouvido a música num filme.

- Alta Fidelidade!? – perguntei cheio de empolgação.
- Isso!
- Esse filme é massa. Mas tem o livro também. E é bem melhor.
- Sério? Não sabia.
- Sim. É um dos meus preferidos. Se quiser eu te empresto.
- Claro. Tava mesmo querendo ler alguma coisa.

Finalmente descemos do fusca e entramos no bar. O bom foi que já tínhamos assunto. Falamos sobre o filme, e eu falei um pouco sobre o livro. Enquanto ficamos na mesa, bebemos, comemos e conversamos com muita desenvoltura. Eu nunca me imaginava me sentindo tão bem com alguém como ela, mesmo estando tão nervoso. Falamos sobre muitas coisas. Namoros, fins de relacionamentos, cultura em geral, esporte, fofocas sobre colegas, opiniões sobre o futuro. Inclusive descobrimos ter a mesma idéia sobre ter filhos:

- Se é pra ter só um, então nem tem. Quero logo uns três ou quatro.
- Também acho! – ela falou, rindo – Só um pode ficar mimado. E se é pra ter filhos que seja pra se divertir com eles. Imagina ir pra praia com o carro cheio.
- Isso mesmo – eu concordei, olhando pra ela e tentando disfarçar o olhar de “pelo amor de Deus casa comigo” – Nós somo old school, acho.
- Como assim?
- Hoje em dia ninguém mais pensa assim. Ou querem ter só um filho, ou nem isso. As pessoas não pensam na solidão que pode vir depois.
- É verdade. Eu não quero ficar sozinha – ela deu uma pausa, olhando pro copo – Sabe Peter. Nunca pensei que você fosse esse tipo de cara. Você tá me surpreendendo. Tem muito de ti que eu nem imaginava.
- E de baixo tem mais.

Ela riu, mas parecia não lembrar de Chaves. Eu comentei, e ela disse que gostava, mas que fazia muito tempo que não via. Eu falei que tinha alguns gravados, e ela adorou. Até marcamos uma sessão nostalgia. E agora eu já estava praticamente babando em cima daquela garota.

Quando veio a banda, nós dançamos e rimos muito. Eles tocaram Mixed Emotions dos Stones, e nesse momento nossas mãos roçaram, e nós nos olhamos demoradamente. Era a hora de eu a beijar, mas sabe como é. Tem certas mulheres que você quer tanto que dê certo, que fica com medo de fazer algo errado e acaba não fazendo nada. Pensei muito nisso e achei que precisava de mais álcool pra criar coragem. Acabou que, quando eles tocaram as baladas nós estávamos tão bêbados que só sabíamos avacalhar e dar risadas. Em Love Hurts, estávamos só os dois na pista, cantando junto e fazendo chifrinho de corno como dois amigos bêbados. Me dei conta do perigo da nossa relação chegar no nível da amizade que impede o namoro, e decidi que estava na hora de ir. Hora da coletânea da volta fazer algum efeito. Ela insistiu que a gente esperasse um pouco, e eu bebesse uma coca pra ficar mais sóbrio. Depois saímos.

A volta pareceu mais propícia. Estávamos mais quietos e as músicas funcionavam melhor. Em Thank you ela me olhou e me deu aquele sorrisinho novamente. Eu entendi que, apesar de não parecer, ela tinha captado as mensagens das músicas. Quando tocou Buckets of Rain ela achou a música linda e quis saber o que era. Aí, eu já não tinha como negar e como querer adiar. Estava tomada a decisão. Quando ia começar The Cristal Ship, nós passávamos por um lugar onde a vista da cidade era linda, e a lua brilhava de forma incrível sobre nós. Parei o carro ali mesmo pra curtimos um pouco aquela visão. Me aproximei dela, colocando o braço sobre seu ombro. Ela, que observava a lua, se voltou pra mim com um sorriso incrível e perguntou:

- E aquela história de onde se ganha o pão, não se come a carne? (Ah! então ela tinha ouvido).
- Não tem problema. O que eu ganho não dá nem pro pão, mesmo.

Ela riu jogando a cabeça pra trás e mostrando todo seu pescoço e depois voltou e me olhou nos olhos. Eu sabia que não havia mais nenhum sinal que ela podia me dar. Nos beijamos e foi... Nossa! Incrível! Ao som da passagem de piano mais linda do rock, nós nos entregamos a troca de salivas e ao passeio de mãos de forma intensa e realmente linda.

Quando chegamos na frente de sua casa, ela pediu para não dormirmos juntos aquela noite porque achava que transar no primeiro encontro não ajudava a um relacionamento durar mais tempo. Ao ouvir aquilo eu fiquei realmente feliz, afinal, o que eu mais queria era que nosso relacionamento durasse. Logo que ela desceu, eu lasquei um “que delícia professor, que delícia!”, coloquei Sweet Home Alabama (que é sempre um hino pra quem tá feliz) e saí dali mais radiante que o fusca que tinha recebido duas mãos de cera antes do passeio.

O mês de novembro chegou e...
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Finalmente Pedro toma uma atitude e finalmente essa história parece mostrar algum propósito. Será que agora vamos entender o que realmente ele precisa fazer para encontrar rumo na sua vida? Ou será que esse encontro e um possível namoro já é o suficiente? Veremos mais adiante.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

O Terreno Baldio da Adolescência - Parte IV

Na última parte, deixamos nosso amigo a ponto de nos contar o terceiro acontecimento naquele outubro de 2007 que o deixou em um estado de reflexão e tristeza. Vamos acompanhar, agora, qual foi esse acontecimento e o que ele provocou.
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Aí que veio o terceiro acontecimento. No dia seguinte recebemos a notícia que Dumas havia falecido bem naquela noite em que cuspíamos bagaceirice no seu velho balcão. Fiquei tremendamente chocado com a notícia. O Dumas? Pô, o Dumas era imortal. Não dava pra imaginar ele não mais aqui conosco. O velho roqueiro era como que um herói mítico imortal para a gente, e ninguém nunca pensou que um dia ele pudesse morrer. O velório seria na quinta, e eu deveria levar minha meia lua porque ia rolar uns sons acústicos em homenagem a ele.

Perambulei à noite escutando Ballad of Curtis Loew, do LS. Aquele era o clima. Eu estava arrasado. Com certeza O Cara tinha sido um dos principais responsáveis pelo bom e velho rock’n’roll clássico estar nas nossas veias. Era um cara alto e forte, pra não dizer gordo. Tinha sido cabeludo, mas agora já estava meio careca. Usava um bigode horseshoe que era seu orgulho e sempre mantinha impecável. Rosto arredondado, o tronco era avantajado. Tinha um sorriso bonachão, e estava sempre falando como se estivesse xingando, mas a gente sabia que era só estilo. Sua frase clássica era: “deixa de viadagem e faz o que eu to dizendo”. Sempre com uma inconfundível rispidez simpática. Ensinou a gurizada a gostar de rock e da história do rock. Ele tinha lá seus dezesseis anos no início da década de setenta. Sempre dizia que nunca iria esquecer.

Adorávamos ouvir música enquanto ele contava as histórias das loucuras de adolescente. Na sua pequena garagem, onde montou a locadora de vídeo-games, aconteciam as discussões mais acaloradas. Aquelas que nunca levavam a nada, mas que, segundo ele, serviam para fixar nossa veia ideológica do rock. Mas elas dificilmente acabavam bem, como a clássica: “qual era o melhor álbum ao vivo de rock”. Um dia, um fulano, que ninguém sabia direito quem era, me veio com um “Strangers in the night”. Saiu de lá quase linchado.

Inconscientemente, enquanto recordava Dumas, acabei parando no terreno baldio. Olhei para o lugar e não tive como não deixar escapar umas lágrimas. Estava tudo acontecendo tão depressa, e a morte do Dumas só me fez pensar mais ainda em minha vida. E imaginei um rio que corre para o mar com o único objetivo de lá chegar: sabe exatamente o que precisa pra isso e faz exatamente o necessário, sem deixar ninguém o impedir. Me vi como uma poça de água estagnada que a chuva criou e deixou ali sem propósito algum a não ser secar lentamente. Se ao menos eu pudesse ter uma outra poça do meu lado, que de vez em quando deixasse escorrer alguma água pra mim.
Pensando nisso tudo, o vazio do terreno baldio se misturou com o vazio da minha juventude. Vazia, sem propósito, sem aquela ebulição revolucionária do final dos sessenta que fazia os jovens pensar. Minhas roupas eram baseadas no passado, minhas músicas eram de bandas que já nem existiam mais (se conseguisse juntar os membros que sobraram de cada uma, talvez desse pra formar outra nova), e por isso as minhas idéias eram as mesmas de caras que ainda lutavam por liberdade sexual e essas questões nada atuais hoje em dia. Eu me via devastado como aquele terreno baldio, mas nem mesmo tive uma adolescência de devastação. Não tive que lutar por nada; não tive que mostrar quem era; não teve nenhum “eles” pra me apedrejarem e não precisei me drogar pra encarar nenhuma dificuldade. Mas estranhamente me sentia balançando em uma forca invisível que eu criara, e que me impedia de me libertar da casa dos pais (coincidentemente meu toque de despertador era Gallows Pole, ou nem tão coincidente, podia ser mesmo meu inconsciente me mandando uma mensagem). Resumindo, não devastei nada pra poder construir em cima.

No velório, estávamos todos lá. Velhos amigos que já nem moravam mais na cidade, outros que continuavam por aí, mas que estavam sumidos. Foi realmente emocionante. Tocamos durante um tempo algumas versões acústicas das músicas preferidas dele. Um cara que ninguém reconheceu, mas que a Diva parecia respeitar muito chegou com uma viola e uma gaita de boca, e todo mundo olhou pra ele com um respeito que não sabíamos bem de onde. Parecia envolto em uma aura de herói de história em quadrinhos. Detonou um B.B.King. Era um dos favoritos do Dumas. Fiquei arrepiado. Foi lindo. Aquilo me fez pensar que Dumas merecia mais, que depois devíamos organizar algo maior. E no meio daquele momento triste e emocionante eu recebi uma luz. Algo como a voz do Dumas me dizendo o que fazer. Fiquei tão nervoso que quase não consegui terminar a música.

Quando acabamos, eu resolvi sair pra arejar e expandir as idéias. Encontrei o tal cara da gaita de boca sentado mais adiante da capela do cemitério, perto da entrada do imenso jardim onde ficavam as pequenas lápides. Parei do lado dele e ascendi meu cigarro. Ele segurava uma daquelas garrafinhas metálicas de bolso. Tomou um gole e me passou. Experimentei. Era uísque e dos bons. Ele disse que era Johnny azul, que não bebia nada abaixo disso, e deu um sorrisinho safado.

Ficamos um tempo em silêncio porque não tive capacidade de continuar o diálogo. Mas pra minha surpresa, o cara olhou pra mim e deu um assovio. “Puxa” disse ele “você cresceu heim Peter”. Fiquei olhando surpreso com o fato de ele me conhecer. Meu apelido era meio óbvio, quer dizer, mais ou menos. Não era só a versão inglesa do meu nome, era mais por causa do Peter Pan, porque eu sempre fui o menor da turma, e todos diziam que eu não queria crescer. Até meu irmão mais novo era maior do que eu. Mas eu não era muito conhecido assim fora da galera do Penelope. Como é que eu não conseguia me lembrar dele?

Foi quando ele sorriu pra mim e perguntou se eu não o estava reconhecendo.

- Sou o cara chato que ficava cuidando pros pirralhos não estragar os vídeo-games do Dumas.

Caralho! É claro. Como tinha esquecido? Tito, o irmão problema do Dumas. Era o caçula que sempre arrumava confusão. Preso por tráfico de drogas, porte de armas e arruaças. Sempre voltava com a história de que ia tomar jeito. Da última vez ganhou o emprego de segurança na locadora de vídeo-games do Dumas. Depois sumiu de novo. A última notícia que tivemos era que tinha se estabilizado, constituído família, arrumado emprego numa gravadora (Dumas sempre dizia que ali estava um desperdício porque o irmão tocava muito) e estava passando bem. Pelo jeito era mesmo verdade, pelo respeito com que foi recebido pela Diva. Ali estava um cara que sempre fora meio mito pra galera. Todos diziam que ele era um baita músico e que vivia uma vida maluca, mas aproveitando muito. Se bem que não tínhamos muita certeza porque quando ele reaparecia, era sempre todo acabado e arrependido de algo que não sabíamos. Mesmo assim, Dumas parecia gostar dele, e sempre dava algum jeito de falar bem do talento do irmão.

- Você não tá mais tão pequeno – ele falou pra sair daquele silêncio constrangedor – ainda te chamam de Peter?

Respondi que sim com a cabeça, mas continuei calado. As idéias fervilhavam no meu cérebro, e ali estava alguém que certamente podia ajudar. Expliquei pra ele da importância do irmão pra uma galera e da importância do Penelope pra cidade e pedi se ele não achava que o irmão merecia uma homenagem maior. Ele pediu o que exatamente, e eu expliquei da idéia de fazer um festival de bandas em nome do Penelope pra homenagear o Dumas.

- Esquece – respondeu baforando – Isso dá muito trabalho.

- Mas se a gente usasse sua influencia e o nome dele – continuei eu, mas nem mal havia terminado a frase, e o Tito já me olhou como quem olha pra alguém que acabou de dizer que Duane Allman não é o maior guitarrista do southern rock.

- Eu não sou tão influente assim, e nem meu irmão é tão conhecido. E o Dumas era um cara na dele. Não ia gostar de uma homenagem dessas. Do jeito dele, construiu uma vida boa porque era feliz no que fazia. E foi assim que se tornou importante pra nós. Ele vai ficar na história das pessoas que o conheceram. Não é uma frase minha nem dele, mas acho que o segredo é: ache uma mulher pra achar o amor, e ser um homem simples. Foi o que o Dumas fez, e, depois, o que eu também fiz. E posso garantir que funciona. É por isso que ele deve ser lembrado, e não precisa mais nada. Se a gente puder ser, cada um, um pouco como ele, já é homenagem que chega.

Ele saiu, e eu fiquei lá, diante de um gramado belíssimo, mas que nada mais era do que um lugar cheio de morto. Assim como minha idéia. Até era bonita, mas não passava de uma idéia morta.

Depois do enterro, os amigos mais íntimos se reuniram no Penélope pra beber o defunto. E nossa! como bebemos! Acho que Dumas ficaria orgulhoso. Não comentei nada da minha idéia com mais ninguém, e a certa altura ela já nem dava mais as caras na minha cabeça. Mas acho que o Tito comentou com a Diva, porque uma hora ela passou por mim e colocou a mão no meu ombro, me olhando com um carinho diferente e afetuoso. Talvez fosse efeito do álcool, mas de todas as pessoas por quem ela passou e colocou a mão no ombro, pra mais nenhuma ela olhou com aquele carinho.
Fui embora já bem alto, e deixei o fusca estacionado lá na frente. Coisa que fazia muito seguido porque era um lugar seguro, e porque ninguém roubaria o herbby. Não por ser fusca, mas a trava dele nem o MacGyver arrombava.

Caia uma garoinha fina e gelada que criava uma aura meio sombria na rua, e tinha aquele vapor rodeando as luzes no poste, que nem filme de terror. Comecei a andar em direção a minha casa, mas sem nem saber como, me vi passando na frente do cemitério. Fiquei parado por ali um tempo, balançando sob minhas pernas. Não sabia direito o que estava fazendo, mas entrei no lugar. Pra minha surpresa, vi mais adiante um vulto que se movia em minha direção. De repente eu estava sóbrio. Bem sóbrio. E me via naquela situação. Tentei sair correndo, mas minhas pernas não se mexiam. Sabe nos pesadelos, quando a gente tenta correr, mas nossas pernas parecem presas? Pois é, era assim que eu estava. O vulto se aproximou, e eu pude ver que estava sujo de terra, mas vestido com o terno impecável com que tinha sido enterrado. Ele parou na minha frente e pediu um cigarro.

- O que você ta fazendo aqui fora, Dumas?

- Quero fumar um pouco. Lá em baixo é proibido – Ele respondeu.

Dei o cigarro, e ele puxou uma garrafa de bom uísque, bem como o irmão. Me ofereceu. Puxa! pensei, acabei de beber o defunto e agora vou beber com o defunto. Sentamos na sua lápide, e começamos a falar da vida (o que me deixou meio desconfortável diante da pessoa com quem eu falava), mas ele parecia não se importar. Então me perguntou por que eu estava tão triste estes últimos dias. Eu falei das minhas angústias, de como me sentia perdido, sem saber o que fazer da vida. Achava que não queria ser professor de história, que na verdade eu queria mesmo era ser músico, fazer sucesso e ter uma vida fácil. Ele riu e me disse que vida fácil não seria. Me mandou parar de pensar e começar a sentir. O que meu coração queria mais nesse momento?

- Rosana, eu imediatamente respondi.

- Então? Não fique pensando em futuros grandiosos e em ter uma vida como a que eu tive, cheia de histórias. A nossa vida é pra ser simples. O que você precisa é de uma mulher. A melhor coisa é arrumar alguém pra amar e querer ficar do lado dela. Depois disso, as coisas vão ser mais claras.

- Quer dizer que se eu começar a namorar a Rosana, eu posso descobrir o que quero da vida?

- Mas claro. Aí vai querer achar algo que você goste de fazer tanto quanto estar junto dela. E também vai querer arrumar algo que te sustente pra você poder casar com ela e ter filhos. E aí pronto. Tá feita a vida.

- Mas eu não sei. Às vezes parece tão sem propósito essa vidinha.

- Deixa de viadagem e faz o que eu to dizendo. Peter! Você nunca prestou atenção de verdade nas letras da tua banda preferida? O que elas sempre dizem? Como eles veem que um homem deve ser para ser feliz?

Fiquei em silêncio, olhando pra ele e esperando a resposta, mas ao mesmo tempo ele também fazia a mesma coisa. Por isso, ficamos quietos por uns segundos. Como ele viu que eu era muito burro e não tinha entendido, ele continuou:

- Seja um homem simples. Não cobice e não sonhe demais. Apenas ame e seja amado. Lembra? Eles sabiam que a vida não é pra ser cheia de coisas. Você tem que casar e formar uma família, o resto tá em volta disso. Você vai ver. É muito mais natural do que parece a gente querer ter só uma vida ao lado de quem ama, e ter grana pra sustentar e poder ajudar as pessoas que gostamos. É isso e o resto se endireita – ele ficou um tempo olhando a boca da garrafa, pensativo – Pena não se pensar mais assim – tomou mais um gole e finalizou – E quanto àquela história de homenagem pra mim, primeiro conquiste a garota, depois pensa direito.

Enquanto ele dizia essas últimas palavras, uma névoa mais densa começou a baixar, e quando eu vi, não via mais nada. Dumas não estava mais ali, e eu tinha escorregado e estava deitando na grama, escorado na lápide. Levantei e tentei voltar pra casa. Mas estava tão atordoado e zonzo que nem mesmo lembro como consegui chegar e deitar na cama. No dia seguinte, o velho toque do despertador me tirou da cama, mas me deixou a puta dor de cabeça. Fui trabalhar acompanhado dela, e de uma tremenda dúvida sobre minha lucidez.

Na escola, eu estava meio retraído. Não sabia bem qual seria minha reação ao ver Rosana. Passei o resto da semana assim, sem conseguir pensar muito. Aquela cena com o defunto do Dumas tinha me deixado meio cabulado. Não sabia bem se tinha sido sonho ou não, mas se foi, tinha sido bem real. O fato era que, sonho ou não, tinha suas verdades naquelas palavras. E eu não podia deixar de achar que estava perdendo tempo pensando nessas coisas todas e não agindo. Tinha de aproveitar minha proximidade com Rosana, e o fato de ela estar solteira.

Até que certo dia, passado o abalo da morte do Dumas...
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Bom, acho que uma morte e a conversa com um espírito já é coisa demais pra essa parte. Na próxima iremos descobrir como essa conversa bizarra ajudou ou não a Pedro (Peter) e o que ele, finalmente, irá fazer da sua vida. Até lá.