domingo, 22 de agosto de 2010

Para amantes do esporte e pessoas comuns

Pra quem já se pegou perguntando, às vezes um tanto decepcionado (como nós gremistas ultimamente), por que raios se mata torcendo por um time de futebol. Por que sofrer por causa de um bando de jogadores que ganha muito bem e que na maioria das vezes parece não estar se importando. Pra você que já esbravejou de raiva dizendo que vai parar de torcer, não vai mais se importar porque isso é perda de tempo, mas que no jogo seguinte ta lá, na frente da TV, grudado no radinho ou mesmo no estádio, novamente roendo unhas e torcendo como nunca. Se você é como eu e outros milhões ao redor do mundo, então você precisa ler o livro Elogio da Beleza Atlética, do alemão, Hans Ulrich Gumbrecht. Um esplendido e divertido tratado que tenta entender por que o esporte fascina tanto o ser humano e, ao mesmo tempo, é sempre diminuído como mero ópio do povo pelos pensadores da academia. Nada melhor que um desses intelectuais para responder à pergunta.

Gumbrecht é professor na universidade de Stanford na Califórnia desde 1989, na área de literatura comparada. Atualmente o professor atua, pesquisando, escrevendo e ensinando nas áreas de literatura da Idade Média e do final dos séculos XVIII e XIX; história e pragmática dos meios de comunicação; epistemologia da cultura do dia-a-dia e sobre a estética do esporte. Figurinha conhecida do público universitário gaúcho, ele já esteve por aqui dando palestra algumas vezes, e estará novamente amanhã, dia 23 de agosto, na UFRGS falando justamente sobre esse livro.

Lançado em 2006, com tradução para o português da Companhia das Letras, o livro tenta responder por que tantas pessoas se identificam com atletas e diferentes esportes sem que isso traga nada de realmente válido para suas vidas práticas. Para tal, Gumbrecht diz querer fugir da visão metafísica ocidental que sempre divide as coisas entre o material e o espiritual e acaba privilegiando o lado espiritual dessa divisão. “As formas produzidas por movimentos corporais e a presença desses corpos – parece afirmar uma voz cheia de credibilidade – simplesmente não podem ser importantes o suficiente para se tornar alvo de preocupação, muito menos para que se escreva sobre elas”. Assim, o professor irá se focar “nos corpos dos atletas, em vez de abandonar o tópico do esporte para ‘interpretar’ esses fenômenos como uma ‘função’ ou uma ‘expressão’ de alguma outra coisa”.

O livro segue uma organização bem clara, com uma linguagem simples, mas cheio de idéias interessantes. A primeira parte é chamada “Definições” e dividida em três capítulos: Elogio, Beleza e Esporte. Aqui está o lado mais teórico e acadêmico onde Gumbrecht busca em Kant uma definição de belo, e também traz termos conhecidos da crítica literária e filosófica como “performance”, “presença”, “significado” e “signo”, ou termos da tradição grega como “agon” e “arete”.

A definição de esporte dada por ele é baseada em pares de oposição que explicam sua idéia de performance. Uma performance baseada na presença como parte física do mundo, e sempre visto como algo além da mera ação, pois marca a capacidade do corpo em ir além, sem que o espectador fique tentando saber qual a intenção do atleta em cada jogada. Ou seja, Gumbrecht ao falar da divisão mente e corpo, coloca o esporte no lado físico, no corpo, como uma performance específica, muito mais forte e real do que a atuação, por exemplo. É quase uma epifania, uma transfiguração dos grandes atletas “em nossa percepção imediata e, mais tarde, em nossa memória”, através do drama da competição.

A segunda parte, intitulada Descontinuidades, traz um apanhado histórico do esporte, tentando mostrar as alterações sofridas, através dos tempos, na preferência do público. A principal questão é a mudança no caráter de “insularidade” do esporte em relação ao dia-a-dia das pessoas: como o esporte está cada vez mais insular, hoje, do que era antigamente. Na Grécia antiga, as primeiras olimpíadas, por exemplo, eram muito mais ligadas à vida cotidiana dos espectadores, assim como em Roma. Acabando com nossa visão romântica do esporte na Grécia antiga, que era, muito provavelmente, bem mais competitivo do que hoje em dia (lembremos que não havia premiação para segundo e terceiro lugar), o autor nos dá uma bela visão da evolução do caráter do esporte, tanto do ponto de vista dos atletas quanto do público.

A terceira parte é dedicada aos Fascínios que o esporte nos causa. “O que gostamos nos esportes, e o que tratarei como objeto dessa experiência, pertence a uma série de fenômenos que fica de algum modo entre a performance e o ato de julgá-la. São movimentos corporais quase sempre já moldados pelas expectativas e pelo apreço que os espectadores levam com eles para o jogo.” Ele, então, explica sete formas de fascínio (Corpos, Sofrimento, Graça, Instrumentos, Formas, Jogadas e Timing) que contribuem para nosso apreço estético do esporte. Discutindo também os esportes que sempre tiveram fascínio (com carros ou animais), os que voltaram de alguma forma a ter (fisiculturismo) e por que o fascínio pelos esportes com bola cresceu tanto nos últimos anos.

A conclusão do livro se intitula Gratidão. Já vou avisando àqueles que chegarem aqui esperando uma resposta reveladora e fácil, entregue de bandeja sobre o porquê gostamos de esportes, que poderão ficar um tanto desapontados. O livro não se propõe a desenvolver o tema até chegar à resposta definitiva e final. O último capítulo, inclusive, a meu ver, é o menos revelador de todos. Porém, para aqueles que gostam de uma leitura em que se vai montando as peças, juntando as informações para se ter uma bela visão do todo, sem esperar que no final ele resuma tudo em um parágrafo, esses entenderão a intenção do final do livro. O título já diz tudo: Gratidão. O encerramento não passa de um agradecimento aos esportistas, aos ídolos do escritor (e aos do leitor através do que estão lendo) que o inspiraram a escrever esse elogio a suas capacidades que tanto nos fascinam.

Àqueles que gostam de esporte, e às pessoas normais que queiram entender por que esse fascínio pela emoção de um jogo, de uma corrida, de uma luta; recomendo essa leitura. Certamente divertida, informativa e instrutiva.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Delírio de Autonomia

Um jovem no fim dos anos 80 e início dos 90 é fã de uma banda. Não importa qual, Guns and Roses, Nirvana, Pearl Jam, U2... Sempre que ouve uma música deles no rádio, precisar possuí-la, ter consigo para escutar a qualuqer hora. Então, ele prepara fitas K7 e fica ligado nas programações das rádios mais rocks e grava, sempre que consegue, uma música da sua banda preferida. É difícil, trabalhoso, mas sempre que obtém exito ele fica satisfeito. A seguir, ele precisa comprar o novo CD que eles lançaram. Quase todos os dias, ele vai à lojinha que tem no centro da cidade. Olha o CD na prateleira, namora-o, pega-o com mãos desejosas e fica lendo o nome das músicas com olhos sonhadores. Imagina-o aberto, o encarte com as letras; imagina-o tocando no seu stereo. Ele ainda não tem dinheiro para comprar o CD, mas planeja formas de conseguir. Ele economiza as mesadas, lava a louça para a mãe, corta a grama para o pai e mesmo assim ainda falta dinheiro. O CD tá caro, ainda mais lançamento.

O jovem precisa de um tênis novo e pede dinheiro ao pai. Ele vai na loja e procura o tênis mais barato porque não se importa com se não está na moda ou se é feio. O dinheiro que sobra junta-se com o que havia ganhado até agora, e, assim, consegue ter o suficiente para comprar o CD. Vai na loja de CDs, finalmente pega aquele objeto com mãos diferentes, com mãos de quem vai possuí-lo. Ele paga o vendedor e sai da loja como uma nova pessoa. Apesar do single do CD estar gravado naquela K7 exaustivamente escutada em casa, agora terá o CD inteiro. Poderá ouvir todas as músicas com calma e deleite. Manuseará o encarte com cheiro de novo. Lerá as letras, tentará traduzí-las. Será um novo mundo; uma nova vida durante meses. O jovem está satisfeito não só com o que ouvirá, mas com a conquista obtida com dificuldade, com espera e paciência, com ardor e esperança.

Nos anos dois mil, um jovem gosta muito de uma banda. Não importa qual, pode até ser várias diferentes. Ele ouve uma música nova da banda e quer muito aquele CD. Ele entra num site, digita algo e com alguns cliques baixa todo o CD. Em dias ele ouvirá tudo, lerá as letras na internet, traduzirá num tradutor online (ou mesmo já encontrará traduzidas) e achará aquilo o máximo porque nem precisou levantar a bunda da cadeira. Mas logo ele ouvirá outra música de outra banda que o interessará também. Então ele esquecerá a banda anterior, baixará o novo CD e o resto você já sabe.

Percebeu a diferença? Notou quanto eu precisei escrever para contar (ainda que resumidamente) como o jovem de antes fazia para ter as músicas da banda preferida, e como o jovem de hoje faz para ter as músicas de qualquer banda que ele quiser? Pois é. Isso parece uma bobagem. Mera caretice de quem não aceita a tecnologia, mas não é. Eu aceito a tecnologia. Tenho vários CDs baixados no meu computador. Mas tenho vários comprados também. A questão não é essa. A questão não é comprar ou deixar de comprar CDs. Ela se estende para um problema bem maior. Essa situação é apenas um modelo aplicável a tudo mais que anda acontecendo por aí.

A geração atual nasce sem aprender como deve superar obstáculos para conseguir o que quer. Eles nascem na era dos "cliques": um, dois, três cliques e você tem o que quiser ao seu dispor. Isso parece bobagem? Pois o que você acha que passa na cabeça de um casal de jovens de 16 e 14 anos que coloca no twitter seu videozinho de intimidades? Se tudo é tão fácil, se não há obstáculos para eu obter o que quero, não há obstáculos para mais nada.

Alguns especialistas chamam esse problema de “delírio de autonomia”. A autonomia do sujeito vem de filósofos modernos. Podemos apontar Descartes como o primeiro a falar do ser humano como autônomo, ao colocar a dúvida como princípio racional para tudo. Porém, é com Kant que essa autonomia se torna a “autonomia da vontade”, que fundamenta o imperativo categórico. Resumidamente, para não ter de ir muito fundo nesse ponto complexo, o imperativo categórico estabelece as três formulações necessárias para que a moral seja autônoma e não baseada em leis externas. Porém, essa autonomia é baseada no respeito e reconhecimento da categoria do “outro” como um fim em si.

No século XIX, esse homem autônomo torna-se o público consumidor necessário ao sistema capitalista. Se você é livre para agir, é livre para comprar. Os dilemas criados nesse século por conta de uma questão tão complexa como a liberdade de cada um para fazer o que quiser, é muito bem trabalhada no livro Crime e Castigo, de Dostoiévsky. O dilema de Raskólhnikov é o de um homem que não sabe até onde vai a sua liberdade moral para agir da forma necessária a obter seus objetivos. Todo o desenrolar psicológico do livro é representativo do problema dessa autonomia. Um bom paralelo a essa situação é o filme Match Point de Woody Allen, que mostra um quase Raskólhnikov atual. O personagem do filme também quer ascender socialmente e bola um plano para isso.

Os dois desfechos mostram bem a diferença de épocas. Raskólhnikov mata a velha usurária para roubar, mas sua consciência o perturba tanto, que ele acaba se entregando à polícia. Todos os argumentos que ele cria para justificar seu ato definham diante de sua moral abalada pelo assassinato. O final do livro chega a ganhar tons esperançosos, ao mostrar como aquele sujeito aprendeu, com seu erro, o que é realmente a autonomia. Já no filme, o personagem principal, após o crime, apesar de um pouco incomodado por sua consciência, não se entrega, segue seu plano e se dá bem.

A diferença entre livro e filme é justamente o que explica o chamado “delírio de autonomia”. Vivemos em uma época em que o outro não é mais alguém a ser respeitado, mas um mero obstáculo a ser vencido. A autonomia, a liberdade de fazer o que for preciso para satisfazer seus desejos, tornou-se um delírio. É o que chamam de “regime psíquico da demanda”: se eu desejo algo, esse simples desejo justifica tudo aquilo que eu fizer para satisfazê-lo. É isso que está implícito na histórinha narrada anteriormente.

O problema está na nossa relação com a realidade. Essa relação se dá através da linguagem. É essa capacidade que nos diferencia dos outros animais. Linguagem não só escrita, mas falada, gestual e outras. Se antes essa relação se dava pelo papel, pelo telefone, pelo jornal impresso, isso trazia dificuldades e obstáculos. Hoje essa relação se dá pela internet, pelo celular. Os obstáculos não existem mais. A lógica da garotada nascida nessa geração é a lógica de quem não vê porque as coisas têm que ser difíceis. Se ele pode ter a música que quiser, o filme que quiser, se pode falar e ver quem ele quiser só através dos cliques e de uma tela, por que seu trabalho de escola não pode ser feito assim também? Por que ele não pode simplesmente recortar e colar o texto? Por que tem que escrever? Por que tem de perder tempo pensando se pode ser rápido como todas as outras coisas que faz?

Parece exagero alarmante? Não é. Não estou aqui pregando os males da internet. Ela trás muitas vantangens também. Inclusive a possibilidade de esse texto estar sendo divulgado. Devemos nos assustar com garotos menores de idade postando seus vídeos eróticos no twitter? Com certeza. Porém, mais do que isso, devemos tentar entender o que está por trás disso. Essa nova forma de ver e se relacionar com o mundo, que implica o fim das dificuldades e dos obstáculos. Pior, que transforma o outro, o ser humano, em um obstáculo capaz de me atrapalhar na busca por meus desejos. Uma realidade líquida, diria Bauman? Talvez sim. Líquida no sentido de sem barreiras, onde os limites se diluem, assim como as identidades, pois elas, afinal, são moldadas por estes limites.