Então, mais um texto relacionado ao momento atual que nós estamos vivendo. Já me posicionei, no post anterior, quanto ao rumo que os movimentos estão tomando e o que pode ou não acontecer. Agora, me chamou a atenção o fato da disseminação do uso da máscara do V de Vingança tanto nos protestos, quanto numa imagem da internet em que ela se funde com a bandeira do Brasil. Fiquei pensando, será que as pessoas sabem mesmo o que significa essa máscara? Acho que ela daria um belo trabalho de... nem sei direito do que, acho que de sociologia, ou história, ou comunicação social. Enfim, alguém podia estudar mais a fundo o uso dessa máscara através da história, porque ela vem sendo ressignificada a a cada novo uso, pois desde seu "uso" original (o dono do verdadeiro rosto) até os dias de hoje ela não é mais a mesma coisa. Portanto, achei legal dar uma olhada numa breve história desse rosto para quem interessar possa, e para saber se a significação que queremos dar a ela hoje, nos nossos movimentos, é mesmo válida.
Pra começar, vocês sabem que é o dono original da máscara? Não, não é o revolucionário anônimo da Graphic Novel do Alan Moore, mas um inglês do século 17, de nome Guy Fawkes (aliás, o nome dele é muito legal, parece personagem de fcção, não?), que, sendo um católico fervoroso, lutou a favor da Espanha quando a Holanda se declarou protestante e quis sai sob o julgo do império Espanhol. Depois disso, ele se juntou a um grupo de católicos jesuítas ingleses que, contrários ao reinado de James I, que era protestante, planejavam explodir o parlamento no dia do discurso do rei (ele se pronunciava semanalmente no parlamento, com datas marcadas com antecedência). Como Guy era um cara forte, com habilidades bélicas (devido a sua participação na guerra pela Espanha) e especialista em explosivos, ele ficou encarregado de cuidar dos barris de pólvora que o grupo iria colocar sob o parlamento e de detonar a pólvora. Pois bem, eles já tinham até mesmo conseguido por a pólvora lá, mas foram denunciados por uma carta anônima que entregou o plano deles. No dia 5 de novembro de 1605, Guy foi capturado enquanto cuidava da pólvora. Preso, ele foi torturado até entregar os outros conspiradores. Condenado à morte, ele preferiu se enforcar, quebrando seu pescoço, antes da execução oficial, que seria por mutilação.
Esse episódio ficou conhecido como a Revolta da Pólvora. Até hoje, na Inglaterra, é celebrado o dia da sua captura na chamada Noite das Fogueiras, em que se queimam bonecos do Guy Fawkes. Isso mesmo! Celebra-se a sua captura, não a sua tentativa "heroica" de acabar com um rei pura e simplesmente para colocar uma rainha que era da sua denominação religiosa. Ninguém se engane achando que o rei James era um tirano terrível e déspota, e que os participantes dessa revolta era pessoas que lutavam por um futuro melhor. Desentendimentos religiosos existiam na Inglaterra desde a época da reforma, quando um movimento muito grande de protestantes queriam fazer o reino se tornar protestante. Houve muita perseguição contra eles. Depois que a Inglaterra rompeu com Roma (no reinado de Henrique VIII), houve períodos de muita tensão por causa da reforma da igreja na Inglaterra. Porém, durante o reinado de James I, apesar de haver certa repressão política sobre os católicos, que constantemente tentavam tirar o rei do poder, havia liberdade religiosa e eles podiam professar sua fé e ter seus cultos.
Então, primeiro ponto, Guy Fawkes não era herói revolucionário, lutando contra opressão, corrupção, totalitarismo, nem nada disso. Na verdade, provavelmente, do ponto de vista histórico, o herói aí muito provavelmente era o "anônimo" que mandou a carta denunciando o plano do grupo de Guy.
Pois bem. Depois disso, o rosto de Guy, ou pelo menos o rosto que vemos nos desenhos e pinturas da época, se tornou a máscara daí sim de um revolucionário anonimo, lutando contra um governo totalitário, opressor, que domina a Inglaterra em um futuro distópico. Porque Moore, o autor de V de Vingança, escolheu esse rosto eu não sei, nunca li a Graphic Novel. Mas há uma entrevista dele em que diz: “Aquele sorriso é tão assustador. Tentei usar a natureza enigmática desse sorriso para efeito dramático. Podíamos mostrar uma imagem do personagem apenas parado em pé, silencioso, com uma expressão que podia ser de alegria ou de maneira mais sinistra." (http://www.sul21.com.br/jornal/2011/11/criador-da-mascara-de-v-de-vinganca-comenta-ocuppy-wall-street/). Me parece, então, uma escolha muito mais estética, pra criar efeito.
Porém, essa máscara começou a ser usada em 2008 por manifestantes do movimento Anonymous (que não é um movimento revolucionário culinário encabeçado pelo Anonymus Gourmet), que é um meme de internet que surgiu no canal 4chan do imageboard. Entendeu? Não? Tudo bem, de primeira eu também não. Mas vamos lá. Sabe o facebook, o twitter, o finado orkut? Pois é. São as tais redes sociais. O imageboard é um tipo de rede social, mas muito mais simples, não exige cadastro, não mantém histórico das publicações e começou como fórum de discussão de mangás e coisas da cultura japonesa. O 4chan é um tipo de imageboard, ou seja, uma página (www.4chan.org) com vários canais em que você entra, põe um nome qualquer, um título da tua publicação e manda uma foto com algum texto. Coisas rápidas e simples. Pois bem, o Anonymous é um (ou vários, sei lá) que entrava lá e publicava coisas. A coisa começou assim e depois se tornou uma especie de comunidade online, que se diz não só anônima, como descentralizada, que atua de modo coordenado em torno de objetivos livremente escolhidos, ligando-se, posteriormente, ao hacktivismo (atividade de usar as habilidades hackers pra fazer ativismo político), ajudando em protestos ao redor do mundo em diversas causas, mas sempre buscando os direitos do povo diante de seus governos.
Assim, o movimento começou a aparecer em diferente protestos ao redor do mundo a partir de 2008, numa agenda que vai desde participação em protestos contra a Igreja da Cientologia a participação em primavera árabe, passando por apoio ao cara do Wikileaks e ao movimento Occupy. É aí que começa a aparecer a máscara do V de Vingança. Os integrantes do Anonymous usavam a máscara, a meu ver, buscando a ideia de anonimato, que é uma das características do personagem da HQ (curiosamente há uma interessante ironia aqui, pois o herói original, que denunciou o Guy Fawkes era anônimo, agora o Anonymous usa a cara do Guy Fawkes, claro que é só uma livre associação que eu fiz, mas não deixa de ser divertido pensar nisso). O interessante é que essa ideia de movimento sem puta definida, atuando em diversos movimentos às vezes gera certas contradições, como por exemplo, usar a máscara do V, num protesto como a Occupy, que é contra grande corporações financeiras, quando cada vez que se compra uma máscara dessas você paga royalties a Time Warner, que é uma das maiores corporações da área do entretenimento e comunicação.
Outra coisa que me chamou a atenção foi uma declaração do Moore, na mesma entrevista, quanto ao uso da máscara nesses movimentos do Anonymous: “O último capítulo de V de Vingança se chama Vox Populi. A voz do povo. E acho que, se a máscara significa algo no contexto atual, é isso. É o povo, essa entidade misteriosa que com frequência é evocada”.
Bom, pode ser que isso pro Anonymous seja legal e o que eles querem. Afinal, o movimento realmente não tem filiação ou ligação a nenhum país, nenhum movimento específico, mas apoiam a vários movimentos em diferentes países.
Porém, o que eu me pergunto é qual de todas essas imagens os nosso movimentos estão querendo passar? Pode ser que o uso da máscara e a imagem da máscara fundida na bandeira do Brasil seja apenas para mostrar que o movimento Anonymous está apoiando os movimentos aqui, mas, de todo jeito, começou a dar um rosto ao movimento, mesmo que simbólico (o que é ainda mais forte, pois os símbolos são importantes elementos de motivação e união), ainda mais quando se junta esse rosto à nossa bandeira. Agora me responda: qual dos significados aqui apresentados você está querendo dar quando usa essa máscara no movimento ou quando compartilha a foto da máscara com a bandeira, ou ainda usa ela no seu perfil? Do Guy Fawkes que tentou matar um rei protestante pra colocar uma rainha católica no lugar? De um revolucionário anônimo e guerrilheiro contra um governo autoritário? Ou de um movimento anônimo, descentralizado, que apoia várias causas livremente? Será que queremos mostrar que é o "povo, essa entidade misteriosa que com frequência é evocada"? Lembre que algumas vezes na nossa história o povo foi evocado: em uma não tinha pauta definida, apenas uma insatisfação contra tudo e contra todos, e o resultado foi uma ditadura. Nas outras duas, tinham reivindicações bem definidas: "diretas já" e "impeachmant do Collor". Qual estamos seguindo aqui? E assim mesmo, lembrem que esses dois últimos movimentos tinham rostos bem definidos, não havia anonimato. Acho que mostrar a cara, mostrar quem está pedindo e o que está pedindo é imprescindível a qualquer movimento que se pretenda pacífico, político e democrático, afinal, anonimato não tem nada a ver com democracia.
Portanto, pra quem serve o anonimato nos nosso protestos? Pra mim não serve, e pra você? Se não serve também, então cuida com a máscara que estas usando e o rosto que você está dando ao movimento.
O Nefelibata
sábado, 22 de junho de 2013
sexta-feira, 21 de junho de 2013
Minha humilde opinião
Primeiro quero dizer que nunca fui contra os protestos e continuo não sendo, mas...
Acho que a coisa se desvirtuou. Os 0,20 centavos foram a gota d'água que transbordou o copo, mas agora o copo entornou e a água se espalhou sem rumo certo.
Tá ficando uma coisa sem foco, sem reivindicação possível. Querem protestar contra o que? RBS (no caso aqui de Porto Alegre)? Então deixem isso bem claro e foquem nisso. Agora, querem fazer protesto político, então deixem a RBS e protestem por coisas palpáveis. O movimento que começou apartidário, que significa liberdade de qualquer partido participar (imaginem que força teria um movimento que tivesse lado a lado bandeiras do PSTU, PSOL, PT, PSDB, PMDB e outros. Os próprios partidos iriam perceber que precisam mudar), se transformou em anti-partidário, e isso, junto com essa história de fora Dilma e contra a corrupção é um discurso vazio e, acima de tudo, perigoso. Por favor, qual é o único sistema político que é anti-partidário? Isso mesmo, totalitarismo. É isso que querem? Ou querem uma reforma política pra acabar com as coligações partidárias e o coeficiente eleitoral? Porque isso sim é um primeiro passo pra diminuir a corrupção.
Todo mundo sabe que os grandes meios de comunicação são tendenciosos e controladores, quem ainda acredita neles e continua indo atrás deles, não é por falta de aviso, é por comodismo, e esses não vão mudar de ideia. Vivemos num mundo com muita opção de informação, quem realmente quiser e tiver pé atrás com as grandes mídias, vai lá e procura várias outras fontes e opiniões. Acho que focar na RBS é desviar o foco do que realmente importa e do que era, originalmente, o ideal do movimento. Não estou defendendo a RBS. Também acho absurdo a proteção policial a eles, também não concordo com eles, mas o aviso já foi dado, agora parte pro que interessa, afinal derrubar a RBS não vai acabar com a corrupção, não é nem uma pauta possível de ser atingida. Ou você acha que a RBS ou a Globo vão simplesmente acabar ou mudar seu jeito de atuar? O aviso já foi dado, repito: só não sabe que eles não prestam quem não quer.
Sinceramente, não sou dos neuróticos que acham que tudo é um golpe, mas o foco se perdeu e não vai se chegar a lugar nenhum sem reivindicar algo concreto. Além de dar munição aos que querem que um golpe aconteça (porque não sou neurótico, mas também não sou ingênuo de achar que não tem quem queira algo assim). Não adiante ficar se vestindo de branco e pedindo dignidade, isso você muda nas suas atitudes diárias. Protesto é serve pra pedir mudanças políticas possíveis, reais e concretas. Então, ou se decide o que se quer e vai à luta por isso, ou vai acabar, como sempre, em nada.
Além disso, esse papo de "o país acordou". Olha. Eu moro do lado do palácio do governo, e tenho que passar por ali pra ir pra casa. Já faz muito tempo que não passa uma semana sem ter protesto de algum grupo reivindicando algo ali em frente. Só não ia pra mídia porque era pouca gente. Mas se querem fazer um movimento plural, comecem a agregar os pedidos desses grupos que lutam por melhores condições, como os índios, professores, pequenos agricultores e outros. Se, em vez de terem ficado reclamando do transito cada vez que um grupo desses fazia algum pedido justo, as pessoas os tivessem apoiado, já teríamos começado a mudar muito antes. Daria mais efeito do que juntar um monte de gente que tá pedindo coisas, às vezes, opostas, sem nenhum tipo de foco. Querem protestar por uma educação melhor? Apoiem os protestos dos professores. Querem pedir mais dignidade? Apoiem minorias que sofrem indignidades, como os índios. Querem pedir por transporte público de qualidade e de graça? Apoiem os protestos dos rodoviários que, antes disso tudo começar, fizeram um protesto que, entre outras coisas, pedia que se abaixasse a passagem, e que todo mundo reclamou porque deixou o transito lento. Enfim, acho muito válido tudo isso, mas acho que não pode virar a farrar dos protestos, porque daí não vai adiantar nada.
Que isso sirva pra acordar o povo e mudar as nossas atitudes no dia a dia também. Que mude na hora de votar, que nos faça apoiar manifestos de classes que pedem por melhorias justas e legítimas - melhorias que, inclusive, estão entre os pedidos que todo mundo tá fazendo agora de uma forma que começou a ser desorganizada. É pra isso que esses manifestos têm que servir também: acordar a consciência de cada um.
Portanto, nunca fui e continuo não sendo contra os protestos, mas que tenham uma legitimidade política porque não se muda a política de um país sem se fazer política.
Acho que a coisa se desvirtuou. Os 0,20 centavos foram a gota d'água que transbordou o copo, mas agora o copo entornou e a água se espalhou sem rumo certo.
Tá ficando uma coisa sem foco, sem reivindicação possível. Querem protestar contra o que? RBS (no caso aqui de Porto Alegre)? Então deixem isso bem claro e foquem nisso. Agora, querem fazer protesto político, então deixem a RBS e protestem por coisas palpáveis. O movimento que começou apartidário, que significa liberdade de qualquer partido participar (imaginem que força teria um movimento que tivesse lado a lado bandeiras do PSTU, PSOL, PT, PSDB, PMDB e outros. Os próprios partidos iriam perceber que precisam mudar), se transformou em anti-partidário, e isso, junto com essa história de fora Dilma e contra a corrupção é um discurso vazio e, acima de tudo, perigoso. Por favor, qual é o único sistema político que é anti-partidário? Isso mesmo, totalitarismo. É isso que querem? Ou querem uma reforma política pra acabar com as coligações partidárias e o coeficiente eleitoral? Porque isso sim é um primeiro passo pra diminuir a corrupção.
Todo mundo sabe que os grandes meios de comunicação são tendenciosos e controladores, quem ainda acredita neles e continua indo atrás deles, não é por falta de aviso, é por comodismo, e esses não vão mudar de ideia. Vivemos num mundo com muita opção de informação, quem realmente quiser e tiver pé atrás com as grandes mídias, vai lá e procura várias outras fontes e opiniões. Acho que focar na RBS é desviar o foco do que realmente importa e do que era, originalmente, o ideal do movimento. Não estou defendendo a RBS. Também acho absurdo a proteção policial a eles, também não concordo com eles, mas o aviso já foi dado, agora parte pro que interessa, afinal derrubar a RBS não vai acabar com a corrupção, não é nem uma pauta possível de ser atingida. Ou você acha que a RBS ou a Globo vão simplesmente acabar ou mudar seu jeito de atuar? O aviso já foi dado, repito: só não sabe que eles não prestam quem não quer.
Sinceramente, não sou dos neuróticos que acham que tudo é um golpe, mas o foco se perdeu e não vai se chegar a lugar nenhum sem reivindicar algo concreto. Além de dar munição aos que querem que um golpe aconteça (porque não sou neurótico, mas também não sou ingênuo de achar que não tem quem queira algo assim). Não adiante ficar se vestindo de branco e pedindo dignidade, isso você muda nas suas atitudes diárias. Protesto é serve pra pedir mudanças políticas possíveis, reais e concretas. Então, ou se decide o que se quer e vai à luta por isso, ou vai acabar, como sempre, em nada.
Além disso, esse papo de "o país acordou". Olha. Eu moro do lado do palácio do governo, e tenho que passar por ali pra ir pra casa. Já faz muito tempo que não passa uma semana sem ter protesto de algum grupo reivindicando algo ali em frente. Só não ia pra mídia porque era pouca gente. Mas se querem fazer um movimento plural, comecem a agregar os pedidos desses grupos que lutam por melhores condições, como os índios, professores, pequenos agricultores e outros. Se, em vez de terem ficado reclamando do transito cada vez que um grupo desses fazia algum pedido justo, as pessoas os tivessem apoiado, já teríamos começado a mudar muito antes. Daria mais efeito do que juntar um monte de gente que tá pedindo coisas, às vezes, opostas, sem nenhum tipo de foco. Querem protestar por uma educação melhor? Apoiem os protestos dos professores. Querem pedir mais dignidade? Apoiem minorias que sofrem indignidades, como os índios. Querem pedir por transporte público de qualidade e de graça? Apoiem os protestos dos rodoviários que, antes disso tudo começar, fizeram um protesto que, entre outras coisas, pedia que se abaixasse a passagem, e que todo mundo reclamou porque deixou o transito lento. Enfim, acho muito válido tudo isso, mas acho que não pode virar a farrar dos protestos, porque daí não vai adiantar nada.
Que isso sirva pra acordar o povo e mudar as nossas atitudes no dia a dia também. Que mude na hora de votar, que nos faça apoiar manifestos de classes que pedem por melhorias justas e legítimas - melhorias que, inclusive, estão entre os pedidos que todo mundo tá fazendo agora de uma forma que começou a ser desorganizada. É pra isso que esses manifestos têm que servir também: acordar a consciência de cada um.
Portanto, nunca fui e continuo não sendo contra os protestos, mas que tenham uma legitimidade política porque não se muda a política de um país sem se fazer política.
segunda-feira, 24 de dezembro de 2012
Um Conto de Natal em Duas Partes (Parte II)
Foi a Solange quem me ergueu, toda preocupada, e eu ainda estava meio grogue e só sabia dizer que estava tudo bem, e que foi só um susto. Só que só um susto porra nenhuma! Foi um baita susto, porque aquele choque e a queda podiam ter me matado, mas mesmo assim eu não queria parecer fraco na frente dela e já queria levantar e subir de novo pra ver o que tinha de errado. Então a Solange me segurou e me mandou ficar sentado e disse que ia buscar água, e eu fiquei ali, tentando entender o que tinha acontecido, e sentia o corpo tremer todinho e um troço estranho na cachola. Eu nem mesmo conseguia entender o que aconteceu porque na hora estava olhando pra Solange, e não sabia se tinha um maldito fio desencapado ou o que, mas sabia que eu estava sem luva, e isso era errado, e eu nunca tinha errado assim em tanto anos.
Foi só pensar nisso que eu fiquei preocupado com essa das luvas e tentei pensar porque tinha esquecido delas. Então eu olhei o papai-noel ali parado, e não sei se era por causa do susto e da cabeça meio tonta e aquela meia luz que deixava umas sombras, mas o boneco me olhava com aquele sorriso psicopata, e eu fiquei com medo porque parecia que ele estava me provocando e dizendo que a vingança estava feita. Então eu me lembrei das imagens de quando era pequeno, das figuras do Deus de barba e roupão branco e fiquei até meio sem saber o que sentir: era meio que uma mistura de medo e de raiva, não sei, algo assim... estranho.
E eu tentei levantar e sair dali, mas ainda estava meio tonto; então sorte que a Solange chegou e me segurou, porque me impediu de cair e arrancar o pingüim que me apoiava. Então ela me deu a água, disse que já tinha ligado pra Samu e avisado o Silva pra vir ver o negócio. E eu ainda tentei dizer que eu era o responsável e eu tinha que resolver, mas a mulher mostrou porque era segurança e me levou dali na força.
Nós fomos pro HPS, e o médico fez uns exames e me mandou ficar ali a noite toda. Então a Solange veio me ver e pedir se tinha que avisar alguém, mas minha única família era minha irmã, e pra ela não precisava avisar.
Então eu não queria ficar ali de jeito nenhum porque estava mesmo preocupado com o que tinha acontecido e quando fico assim, o único lugar que me deixa tranqüilo é em casa, e eu ficava repetindo que aquilo nunca tinha acontecido e tal.
- Eu sou um bom eletricista – eu dizia – não to nessa empresa por acaso. Agora não sei o que aconteceu pra eu ter errado assim.
Ela tratou de me acalmar e disse que ia pedir pro Silva me dar uns dias de folga, mas eu disse que não queria, porque não gostava de ficar sem fazer nada, então a Solange não queria ficar discutindo e disse que tinha que ir embora, mas ia passar lá em casa amanhã depois do trabalho pra ver como eu estava. Eu nem consegui dormir direito de noite, e não sei se era a cama de hospital ou se era aquela coisa estranha dentro de mim que não me deixava sossegado, mas eu tive até uns sonhos estranhos.
No outro dia, o médico me disse que eu podia ir embora porque não tinha nada de errado comigo, e eu fui pra casa e passei o dia sem saber direito o que fazer. A Solange foi lá de noite e continuou insistindo na folga e disse que não adiantava eu dizer não porque o Silva já tinha decidido.
Então, depois de um tempo, ela olhou bem a minha casinha e perguntou com quem eu ia passar o natal, e eu não sabia o que responder, porque desde que meu pai sumiu com outra, e minha mãe morreu, eu ia pra casa da minha irmã nessas festas, mas a família do meu cunhado era tão mala, que eu já não aguentava mais. Então eu demorei pra responder, e ela acabou me convidando pra ir na casa dela, e foi assim que eu pareci acordar de verdade daquilo tudo, olhei pra ela e me dei conta que a mulher que eu gostava estava ali na minha casa, dando a maior atenção pra mim, mais ainda, ela tinha acabado de me convidar pra passar o natal com ela. Então eu perguntei:
- No duro?
- Sim. A gente faz uma janta bem farta até. Daí fica lá no jardim ouvindo um som, conversando, uns até se animam a dançar. Só que antes disso a gente sempre vai na missa. Se quiser pode chegar depois.
- Tá. Vou sim – eu disse apressado, com medo de ela desistir.
- Combinado.
Ela me sorriu e saiu, e eu fiquei ali meio pateta, olhando a porta, sem saber direito o que pensar. Então eu voltei a ficar estranho, e me larguei na poltrona e fiquei olhando o teto, pensando naquele sentimento doido que bateu depois da queda, o jeito como o papai-noel me olhou só podia ser coisa da minha cabeça, mas esse sentimento que veio junto... não sei. Era tipo medo, mas um medo diferente, medonho, não sei, um medo sem explicação, medo do escuro misturado com o medo da queda.
Então acho que senti medo da morte pela primeira vez, e junto veio uma raiva, não sei do que, raiva de tudo e todos, como se aquilo tudo só pudesse ser culpa de alguma outra coisa, mas não minha.
Eu fui dormir e ainda estava meio pendurado nesse sentimento, e acabei sonhando com queda, sabe aquele sonho que a gente tem de que tá caindo num escuro sem fim? Pois é, eu fiquei sonhando isso o tempo todo, e esse maldito sonho continuou por mais umas noites, e ele só mudava de lugar, às vezes eu caía da escada, às vezes de um morro, às vezes do andar de cima do shopping.
Passei os dois dias até a véspera do natal sem sabe o que fazer, porque o Silva não arredou pé e me deu a licença. Então que eu vi que minha vida sem o trabalho não tinha muita outra coisa, porque eu tinha minhas diversões, mas já fazia tempo que eu gostava era do sossego da minha casa, mas muito tempo de sossego me fazia mal. É aquela história: eu nasci pra ser quero-quero, porque construir o ninho e não fazer mais nada não era pra mim, e eu precisava continuar trabalhando, ou isso, ou eu precisava arrumar alguém com quem dividir esse tempo livre. Então eu lembrei de novo da Solange, e isso tudo se misturou com o sentimento estranho que eu estava tendo, e eu resolvi comprar um presente pra ela.
Então fazia tempo que eu não saia comprar presente de natal, e o centro naqueles dias estava o inferno, era gente saindo pelo ladrão, eu mal conseguia andar na rua, e entrar em loja nem pensar. Olhar vitrine era burrice, que só se via era cabeças, costas e bundas dos outros, tudo amontoado que nem urubu em carniça. E eu não acreditei foi quando me vi dentro de um shopping pra comprar um presente, mas não tinha jeito. Fui direto numa loja de chocolates. Eu não sabia o que dar, mas achei que chocolate toda mulher gosta, mas então me dei conta do calor, se fosse dar bombons, era melhor dar dentro de uma caixa com gelo. Então eu saí e fui olhar roupas, mas não sabia o tamanho e o gosto da Solange, porque quase não a vejo sem o uniforme. Então eu passei na loja de bijuteria, mas isso é presente pra homem que conhece bem a mulher, e eu tinha que ir mais calmo porque estava recém começando a conquista. Então eu zanzei tanto no meio da confusão, que acabei comprando uma garrafa de champanhe, e nem me dei conta da merda: era presentinho bem safado aquele, porque se não é pra aquelas pessoas que gostam e que sabem do assunto, é só pra deixar guardado na cristaleira como se fosse um troféu, até que num ano novo, de porre, ela abre aquele negócio porque não tem mais nada pra beber; ainda mais quando é essas espumantes vagabundas como a que eu comprei. Mas pelo menos foi de coração.
Ainda que gastei um dia nessa função, também fiquei meio irritado, porque enquanto eu tentava voltar pra casa fiquei com vontade de mandar todo mundo à merda com aquela mania de compras, porque mesmo de moto eu estava trancado no transito, querendo matar um, e pensando que merda eu fui fazer. E então eu ouvi meio longe, por cima das buzinas, um som bonito, umas vozes como que de anjos estavam cantando em algum lugar, e elas pareciam vir da direção da catedral, e eu fiquei com vontade de ir até lá porque parecia um negócio que acalmava: o que eu estava precisando.
Consegui sair dali fazendo umas manobras ilegais e peguei uma rua que levava pra catedral, e vi que era alguma programação natalina: um coro muito bonito cantava uma dessas músicas que a gente gosta mesmo sem saber o que diz, porque a letra é em alemão. Então tinha bastante gente olhando, e eu fiquei mais afastado, ouvindo e me acalmando, e era mesmo muito bonito, e eu achei que aquilo sim era espírito natalino.
Então não sei quantas horas fiquei por ali porque perdi a noção de tempo, e na verdade, tinha perdido a noção de tempo e espaço porque estava tão embalado pela melodia que pensei ter flutuado por um instante. Não sei, mas sabe aquela coisa bem de leve, como se a nossa alma tivesse dado um tempo, ido ali e já voltado? Eu acho que eram as cores das luzes na fachada bonita da catedral e as vozes e a figura bonita que o coro fazia e os movimentos do regente, e tudo isso meio que se juntou com aqueles dias estranhos, e eu acho que tudo ajudou pra que eu tivesse a sensação de flutuar mesmo. Não sou pessoa das mais cultas, mas também sei apreciar as coisas bonitas, e aquilo era bonito, ainda mais quando a gente está assim como eu estava, meio tristonho, meio perdido, meio medroso, meio sem saber direito o que a vida ta fazendo com a gente.
No meio daquilo tudo, mesmo a cretinice do natal pareceu sumir, e eu pensei que ali, naquelas vozes e melodias podia haver um Deus, não sei, mas talvez eu tenha achado uma forma de aceitar Aquela existência, se visse que Ele estava mesmo fazendo alguma coisa por mim, como aquele coral estava. Então eu só fui acordado com a explosão dos fogos que acabavam a programação, e eu estava tão envolvido na atmosfera de paz que nem a barulheira me irritou, e achei até bonito o colorido dos fogos sobre a praça.
Eu voltei pra casa e fiquei pensando em muitas coisas, coisas profundas que a gente não se acostuma a pensar, porque parece ser coisa dos que nascem pra isso, os padres e os filósofos e os professores. Então eu pensei na vida, na morte, no tempo, e achei que talvez o medo que eu sentia fosse de alguém que se esqueceu de aproveitar um pouco mais as pessoas, mesmo elas sendo estranhas, porque ainda tinha as legais. Então, talvez eu tivesse envelhecido um pouco naquele natal, e lembrei de muita coisa que aprendia com minhas tias carolas, mas o que era mais forte era a vontade de acreditar em algo a mais. Então, eu, sozinho ali na minha casa, ainda ouvindo o eco do coral, percebi que tinha desistido de alguma coisa... talvez eu tivesse era mesmo desistido de acreditar.
De noite sonhei de novo uma coisa muito estranha, mas não tinha mais queda. Eu andava num descampado e via um morro onde em cima tinha uma escadaria, e eu subia a escadaria, mas ela era cumprida, muito cumprida, e de repente eu chegava no final e não tinha mais pra onde ir, e tinha só o céu na minha frente, e pra trás a escadaria descia. Então eu sentia muito medo, porque estava bem na beirada e quando olhava pra trás, a escadaria era tão reta e estreita que eu tinha medo de voltar, e eu ficava ali parado, sem saber pra onde ir e morrendo de medo. Então eu ouvia as vozes do coral e, lá longe, mais adiante, podia ver o coral cantando na frente de uma igrejinha com uma torre pequena. E fiquei com vontade de ir lá, mas continuava com medo, e então eu olhei pros meus pés e vi asas. Sim, asas nos meus pés, e eu começava a perder o medo, por causa da vontade de ir até o coral. Então eu só pisei e fui e andei no céu mesmo, com as asas nos pés batendo rápidas que nem asa de colibri.
Então eu acordei com uma vontade louca de voar, mas sem saber se tinha chegado na igreja ou não. Nossa! Que sonho maluco! Eu me sentia muito estranho porque tudo aquilo se misturou, e acabou que me deu vontade de ir à missa com a Solange e a família dela. Eles eram gente simpática, querida e te recebiam muito bem.
E acabou que foi muito bom ir à igreja porque foi uma missa simpática e boa, e eu pensei que ia ser aquela coisa de descer a lenha, mas não, porque o padre era um sujeito legal e falou de amor, de esperança, de nunca desistir dos outros porque Jesus não desiste da gente, e eu achei aquilo bem a ver com o momento, e o jeito como ele falava parecia mostrar algo além, alguma coisa que não era nada do que eu tinha imaginado até hoje.
Então, no final da missa, as pessoas se cumprimentavam e desejavam feliz natal, e o clima era bem agradável, e eu estava me sentido bem e andei onde tinha muitas imagens de santos e de Jesus, mas nada daquilo dizia alguma coisa. Então acabei topando com uma bíblia esquecida em um dos bancos, e tinha nela uma folha seca de árvore marcando uma página, e aquilo me pareceu tão interessante, que fiquei meio abobado olhando, e, de repente, eu achei que ouvi como um sopro, uma voz dizendo que eu não desistisse. Então olhei pros lados e vi a imagem de um Jesus bem diferente, de sorriso simpático e olhos espertos, e eu simpatizei com ele e fiquei encarando aquela figura tão diferente de todas as outras que eu conhecia, e ele parecia alguém de verdade, alguém confiável. Então, era como se não fosse a imagem dele, mas o que ele tinha feito por mim, pra todos, e achei aquela história de ouvir Jesus tão maluca que até pareceu mais fácil de acreditar novamente.
Quando fomos pra casa da Solange, ela ficou muito feliz com o presente e disse que não precisava e que já estava bom eu estar ali, e eu fiquei achando que estava ganhando a mulher e não conseguia pensar em outra coisa, mas então ela saiu pra guardar o presente, e eu fiquei pensando no olhar dela e na sinceridade dele e achei que aquilo era muito mais do que só interesse de mulher por homem, interesse de coisas do mundo, mas era um sentimento de quem de verdade se importa com os outros. Então pareceu que eu vi nisso aquele Jesus de novo, e parecia que Ele me sussurrava mais uma vez, e o olhar dela parecia com o Dele. Então, sem nem acreditar direito, eu acho que estava acreditando de novo.
É claro que eu não voltei a ser católico de verdade depois disso tudo, mas pelo menos voltei a acreditar em algo como Deus. Na verdade queria era acreditar em Jesus, pelo menos o Jesus daquela noite, mas como pra se acreditar no Filho, precisa se acreditar no Pai, eu acho que voltei a acreditar em Deus porque eu achei que no fim das contas não tinha porque não acreditar num camarada que, mesmo com toda sacanagem que fazem com Ele no dia do seu aniversário, ainda me pede pra acreditar porque Ele acredita.
Às vezes, quando ainda conto essa história pra Solange, ela me diz que se não conhecesse o marido que tem, diria que ele era um santo. Então eu olho pra ela e digo que em santo eu não acredito, porque salafrário que faz e acontece, daí tem um piripaque qualquer, diz que é uma visão, que se converteu e sai fazendo milagre... Isso pra mim é uma baita sacanagem de quem não respeita a fé dos outros. E pra mim Deus é Deus, o Filho Dele é o Filho Dele, e o resto é tudo homem que só sabe fazer merda.
Foi só pensar nisso que eu fiquei preocupado com essa das luvas e tentei pensar porque tinha esquecido delas. Então eu olhei o papai-noel ali parado, e não sei se era por causa do susto e da cabeça meio tonta e aquela meia luz que deixava umas sombras, mas o boneco me olhava com aquele sorriso psicopata, e eu fiquei com medo porque parecia que ele estava me provocando e dizendo que a vingança estava feita. Então eu me lembrei das imagens de quando era pequeno, das figuras do Deus de barba e roupão branco e fiquei até meio sem saber o que sentir: era meio que uma mistura de medo e de raiva, não sei, algo assim... estranho.
E eu tentei levantar e sair dali, mas ainda estava meio tonto; então sorte que a Solange chegou e me segurou, porque me impediu de cair e arrancar o pingüim que me apoiava. Então ela me deu a água, disse que já tinha ligado pra Samu e avisado o Silva pra vir ver o negócio. E eu ainda tentei dizer que eu era o responsável e eu tinha que resolver, mas a mulher mostrou porque era segurança e me levou dali na força.
Nós fomos pro HPS, e o médico fez uns exames e me mandou ficar ali a noite toda. Então a Solange veio me ver e pedir se tinha que avisar alguém, mas minha única família era minha irmã, e pra ela não precisava avisar.
Então eu não queria ficar ali de jeito nenhum porque estava mesmo preocupado com o que tinha acontecido e quando fico assim, o único lugar que me deixa tranqüilo é em casa, e eu ficava repetindo que aquilo nunca tinha acontecido e tal.
- Eu sou um bom eletricista – eu dizia – não to nessa empresa por acaso. Agora não sei o que aconteceu pra eu ter errado assim.
Ela tratou de me acalmar e disse que ia pedir pro Silva me dar uns dias de folga, mas eu disse que não queria, porque não gostava de ficar sem fazer nada, então a Solange não queria ficar discutindo e disse que tinha que ir embora, mas ia passar lá em casa amanhã depois do trabalho pra ver como eu estava. Eu nem consegui dormir direito de noite, e não sei se era a cama de hospital ou se era aquela coisa estranha dentro de mim que não me deixava sossegado, mas eu tive até uns sonhos estranhos.
No outro dia, o médico me disse que eu podia ir embora porque não tinha nada de errado comigo, e eu fui pra casa e passei o dia sem saber direito o que fazer. A Solange foi lá de noite e continuou insistindo na folga e disse que não adiantava eu dizer não porque o Silva já tinha decidido.
Então, depois de um tempo, ela olhou bem a minha casinha e perguntou com quem eu ia passar o natal, e eu não sabia o que responder, porque desde que meu pai sumiu com outra, e minha mãe morreu, eu ia pra casa da minha irmã nessas festas, mas a família do meu cunhado era tão mala, que eu já não aguentava mais. Então eu demorei pra responder, e ela acabou me convidando pra ir na casa dela, e foi assim que eu pareci acordar de verdade daquilo tudo, olhei pra ela e me dei conta que a mulher que eu gostava estava ali na minha casa, dando a maior atenção pra mim, mais ainda, ela tinha acabado de me convidar pra passar o natal com ela. Então eu perguntei:
- No duro?
- Sim. A gente faz uma janta bem farta até. Daí fica lá no jardim ouvindo um som, conversando, uns até se animam a dançar. Só que antes disso a gente sempre vai na missa. Se quiser pode chegar depois.
- Tá. Vou sim – eu disse apressado, com medo de ela desistir.
- Combinado.
Ela me sorriu e saiu, e eu fiquei ali meio pateta, olhando a porta, sem saber direito o que pensar. Então eu voltei a ficar estranho, e me larguei na poltrona e fiquei olhando o teto, pensando naquele sentimento doido que bateu depois da queda, o jeito como o papai-noel me olhou só podia ser coisa da minha cabeça, mas esse sentimento que veio junto... não sei. Era tipo medo, mas um medo diferente, medonho, não sei, um medo sem explicação, medo do escuro misturado com o medo da queda.
Então acho que senti medo da morte pela primeira vez, e junto veio uma raiva, não sei do que, raiva de tudo e todos, como se aquilo tudo só pudesse ser culpa de alguma outra coisa, mas não minha.
Eu fui dormir e ainda estava meio pendurado nesse sentimento, e acabei sonhando com queda, sabe aquele sonho que a gente tem de que tá caindo num escuro sem fim? Pois é, eu fiquei sonhando isso o tempo todo, e esse maldito sonho continuou por mais umas noites, e ele só mudava de lugar, às vezes eu caía da escada, às vezes de um morro, às vezes do andar de cima do shopping.
Passei os dois dias até a véspera do natal sem sabe o que fazer, porque o Silva não arredou pé e me deu a licença. Então que eu vi que minha vida sem o trabalho não tinha muita outra coisa, porque eu tinha minhas diversões, mas já fazia tempo que eu gostava era do sossego da minha casa, mas muito tempo de sossego me fazia mal. É aquela história: eu nasci pra ser quero-quero, porque construir o ninho e não fazer mais nada não era pra mim, e eu precisava continuar trabalhando, ou isso, ou eu precisava arrumar alguém com quem dividir esse tempo livre. Então eu lembrei de novo da Solange, e isso tudo se misturou com o sentimento estranho que eu estava tendo, e eu resolvi comprar um presente pra ela.
Então fazia tempo que eu não saia comprar presente de natal, e o centro naqueles dias estava o inferno, era gente saindo pelo ladrão, eu mal conseguia andar na rua, e entrar em loja nem pensar. Olhar vitrine era burrice, que só se via era cabeças, costas e bundas dos outros, tudo amontoado que nem urubu em carniça. E eu não acreditei foi quando me vi dentro de um shopping pra comprar um presente, mas não tinha jeito. Fui direto numa loja de chocolates. Eu não sabia o que dar, mas achei que chocolate toda mulher gosta, mas então me dei conta do calor, se fosse dar bombons, era melhor dar dentro de uma caixa com gelo. Então eu saí e fui olhar roupas, mas não sabia o tamanho e o gosto da Solange, porque quase não a vejo sem o uniforme. Então eu passei na loja de bijuteria, mas isso é presente pra homem que conhece bem a mulher, e eu tinha que ir mais calmo porque estava recém começando a conquista. Então eu zanzei tanto no meio da confusão, que acabei comprando uma garrafa de champanhe, e nem me dei conta da merda: era presentinho bem safado aquele, porque se não é pra aquelas pessoas que gostam e que sabem do assunto, é só pra deixar guardado na cristaleira como se fosse um troféu, até que num ano novo, de porre, ela abre aquele negócio porque não tem mais nada pra beber; ainda mais quando é essas espumantes vagabundas como a que eu comprei. Mas pelo menos foi de coração.
Ainda que gastei um dia nessa função, também fiquei meio irritado, porque enquanto eu tentava voltar pra casa fiquei com vontade de mandar todo mundo à merda com aquela mania de compras, porque mesmo de moto eu estava trancado no transito, querendo matar um, e pensando que merda eu fui fazer. E então eu ouvi meio longe, por cima das buzinas, um som bonito, umas vozes como que de anjos estavam cantando em algum lugar, e elas pareciam vir da direção da catedral, e eu fiquei com vontade de ir até lá porque parecia um negócio que acalmava: o que eu estava precisando.
Consegui sair dali fazendo umas manobras ilegais e peguei uma rua que levava pra catedral, e vi que era alguma programação natalina: um coro muito bonito cantava uma dessas músicas que a gente gosta mesmo sem saber o que diz, porque a letra é em alemão. Então tinha bastante gente olhando, e eu fiquei mais afastado, ouvindo e me acalmando, e era mesmo muito bonito, e eu achei que aquilo sim era espírito natalino.
Então não sei quantas horas fiquei por ali porque perdi a noção de tempo, e na verdade, tinha perdido a noção de tempo e espaço porque estava tão embalado pela melodia que pensei ter flutuado por um instante. Não sei, mas sabe aquela coisa bem de leve, como se a nossa alma tivesse dado um tempo, ido ali e já voltado? Eu acho que eram as cores das luzes na fachada bonita da catedral e as vozes e a figura bonita que o coro fazia e os movimentos do regente, e tudo isso meio que se juntou com aqueles dias estranhos, e eu acho que tudo ajudou pra que eu tivesse a sensação de flutuar mesmo. Não sou pessoa das mais cultas, mas também sei apreciar as coisas bonitas, e aquilo era bonito, ainda mais quando a gente está assim como eu estava, meio tristonho, meio perdido, meio medroso, meio sem saber direito o que a vida ta fazendo com a gente.
No meio daquilo tudo, mesmo a cretinice do natal pareceu sumir, e eu pensei que ali, naquelas vozes e melodias podia haver um Deus, não sei, mas talvez eu tenha achado uma forma de aceitar Aquela existência, se visse que Ele estava mesmo fazendo alguma coisa por mim, como aquele coral estava. Então eu só fui acordado com a explosão dos fogos que acabavam a programação, e eu estava tão envolvido na atmosfera de paz que nem a barulheira me irritou, e achei até bonito o colorido dos fogos sobre a praça.
Eu voltei pra casa e fiquei pensando em muitas coisas, coisas profundas que a gente não se acostuma a pensar, porque parece ser coisa dos que nascem pra isso, os padres e os filósofos e os professores. Então eu pensei na vida, na morte, no tempo, e achei que talvez o medo que eu sentia fosse de alguém que se esqueceu de aproveitar um pouco mais as pessoas, mesmo elas sendo estranhas, porque ainda tinha as legais. Então, talvez eu tivesse envelhecido um pouco naquele natal, e lembrei de muita coisa que aprendia com minhas tias carolas, mas o que era mais forte era a vontade de acreditar em algo a mais. Então, eu, sozinho ali na minha casa, ainda ouvindo o eco do coral, percebi que tinha desistido de alguma coisa... talvez eu tivesse era mesmo desistido de acreditar.
De noite sonhei de novo uma coisa muito estranha, mas não tinha mais queda. Eu andava num descampado e via um morro onde em cima tinha uma escadaria, e eu subia a escadaria, mas ela era cumprida, muito cumprida, e de repente eu chegava no final e não tinha mais pra onde ir, e tinha só o céu na minha frente, e pra trás a escadaria descia. Então eu sentia muito medo, porque estava bem na beirada e quando olhava pra trás, a escadaria era tão reta e estreita que eu tinha medo de voltar, e eu ficava ali parado, sem saber pra onde ir e morrendo de medo. Então eu ouvia as vozes do coral e, lá longe, mais adiante, podia ver o coral cantando na frente de uma igrejinha com uma torre pequena. E fiquei com vontade de ir lá, mas continuava com medo, e então eu olhei pros meus pés e vi asas. Sim, asas nos meus pés, e eu começava a perder o medo, por causa da vontade de ir até o coral. Então eu só pisei e fui e andei no céu mesmo, com as asas nos pés batendo rápidas que nem asa de colibri.
Então eu acordei com uma vontade louca de voar, mas sem saber se tinha chegado na igreja ou não. Nossa! Que sonho maluco! Eu me sentia muito estranho porque tudo aquilo se misturou, e acabou que me deu vontade de ir à missa com a Solange e a família dela. Eles eram gente simpática, querida e te recebiam muito bem.
E acabou que foi muito bom ir à igreja porque foi uma missa simpática e boa, e eu pensei que ia ser aquela coisa de descer a lenha, mas não, porque o padre era um sujeito legal e falou de amor, de esperança, de nunca desistir dos outros porque Jesus não desiste da gente, e eu achei aquilo bem a ver com o momento, e o jeito como ele falava parecia mostrar algo além, alguma coisa que não era nada do que eu tinha imaginado até hoje.
Então, no final da missa, as pessoas se cumprimentavam e desejavam feliz natal, e o clima era bem agradável, e eu estava me sentido bem e andei onde tinha muitas imagens de santos e de Jesus, mas nada daquilo dizia alguma coisa. Então acabei topando com uma bíblia esquecida em um dos bancos, e tinha nela uma folha seca de árvore marcando uma página, e aquilo me pareceu tão interessante, que fiquei meio abobado olhando, e, de repente, eu achei que ouvi como um sopro, uma voz dizendo que eu não desistisse. Então olhei pros lados e vi a imagem de um Jesus bem diferente, de sorriso simpático e olhos espertos, e eu simpatizei com ele e fiquei encarando aquela figura tão diferente de todas as outras que eu conhecia, e ele parecia alguém de verdade, alguém confiável. Então, era como se não fosse a imagem dele, mas o que ele tinha feito por mim, pra todos, e achei aquela história de ouvir Jesus tão maluca que até pareceu mais fácil de acreditar novamente.
Quando fomos pra casa da Solange, ela ficou muito feliz com o presente e disse que não precisava e que já estava bom eu estar ali, e eu fiquei achando que estava ganhando a mulher e não conseguia pensar em outra coisa, mas então ela saiu pra guardar o presente, e eu fiquei pensando no olhar dela e na sinceridade dele e achei que aquilo era muito mais do que só interesse de mulher por homem, interesse de coisas do mundo, mas era um sentimento de quem de verdade se importa com os outros. Então pareceu que eu vi nisso aquele Jesus de novo, e parecia que Ele me sussurrava mais uma vez, e o olhar dela parecia com o Dele. Então, sem nem acreditar direito, eu acho que estava acreditando de novo.
É claro que eu não voltei a ser católico de verdade depois disso tudo, mas pelo menos voltei a acreditar em algo como Deus. Na verdade queria era acreditar em Jesus, pelo menos o Jesus daquela noite, mas como pra se acreditar no Filho, precisa se acreditar no Pai, eu acho que voltei a acreditar em Deus porque eu achei que no fim das contas não tinha porque não acreditar num camarada que, mesmo com toda sacanagem que fazem com Ele no dia do seu aniversário, ainda me pede pra acreditar porque Ele acredita.
Às vezes, quando ainda conto essa história pra Solange, ela me diz que se não conhecesse o marido que tem, diria que ele era um santo. Então eu olho pra ela e digo que em santo eu não acredito, porque salafrário que faz e acontece, daí tem um piripaque qualquer, diz que é uma visão, que se converteu e sai fazendo milagre... Isso pra mim é uma baita sacanagem de quem não respeita a fé dos outros. E pra mim Deus é Deus, o Filho Dele é o Filho Dele, e o resto é tudo homem que só sabe fazer merda.
Um Conto de Natal em Duas Partes
Dedicado a Charles Dickens
Então, eu sempre pensei desse jeito: é a natureza que te diz se tu vai ser André Lima ou Renato Portalupe, tu pode até tentar fazer história, mas se tu nasceste pra ser mais um então não tem jeito, e eu vejo isso nos pássaros, como o rabo-de-palha: ele às vezes pega e faz o ninho no pinheiro, no meio dos espinhos e isso deve dar um trabalhão, mas depois que faz, ele fica tão protegido que não precisa mais se preocupar, está lá pronto, e só tem que procriar e aproveitar a vida cantando. Então eu olho o quero-quero: ele faz o ninho no meio do gramado, e é fácil e sem trabalho, mas se tu olhas depois, ele tem que passar o resto do tempo se incomodando e cuidando dos filhotes. Então tu sabes que quando ele canta não é de alegria, é de preocupação. E ninguém vai me convencer que podia ser diferente se o quero-quero quisesse; não ia ser. A natureza disse pra eles serem assim, e cada um é como tem que ser.
Era mais ou menos isso que eu pensava da vida: você tinha que jogar com as cartas que ela te dá, e as coisas são assim, e não dá pra ficar se iludindo com essas ideias de que pode fazer algo pra melhorar. Tu achas que a vida te dá alternativa (pinheiro ou grama) pra tu escolheres, mas não, porque é ela mesma que te leva pra um lado ou outro.
Por isso eu achava o natal uma merda, uma epocazinha que me deixava de mau humor, quando eu mais via que a natureza era filha da puta. E digo natureza porque já não acreditava mais em Deus. Até tinha sido criado numa família bem católica, mas eu mesmo já não era mais católico. A última vez que tinha me confessado foi quando roubei bolacha do pote de cima do armário, e foi tanta ave-maria e padre-nosso de castigo, que o padre deve ter mesmo achado que as bolachinhas eram caras. Mas o que me fez desistir foi aquela mania de me fazer acreditar naquele Deus de barba e roupão branco, ou naquele Jesus dos olhos azuis, porque isso era muito difícil de engolir. Acreditar que o mundo foi criado por esse camarada? Não sei, mas era muito chato rezar imaginando falar com aquelas figuras dos santos e aquele Deus, umas imagens que não me diziam nada, até porque me fazia lembrar o papa, e esse camarada nunca me desceu. Por isso achei que era melhor acreditar em alguma coisa do tipo “natureza”, que mandava em tudo.
Então, como eu dizia, achava que o natal era epocazinha medonha porque trabalho num shopping, e não tem lugar mais certo pra se ver como o homem é bicho desgraçado. Passar os dias no shopping era provar que Deus não existia mais. Era difícil pensar que Ele tinha criado os homens pra ficarem andando e olhando vitrine e comprando coisa. Se a vida era isso, eu achava que ou Deus não existia, ou ele estava muito errado. E tudo isso eu achava até aquele natal, quando aconteceu uma coisa que me fez pensar.
Foi no meu primeiro natal trabalhando no shopping Barra Sul, um shopping muito, mas muito grande que abriu em Porto Alegre, um troço gigante. E a empresa onde eu trabalho cuida da parte elétrica de lá, e aquele era o primeiro natal do tal Barra Sul Shopping Center, e decidiram colocar um enfeite modernoso lá no meio: tipo uma ilha num entroncamento de corredores, cheio de presentes, papais-noéis, ursos-polares e pingüins, e tinha até papai-noel que girava um bebe urso-polar (só faltava uma coca-cola na mão), e num dos lados desse negócio tinha um papai-noel que se mexia, tocava flauta, piscava e cantava com um coral de pingüins mexendo a cabeça, um troço pra lá de medonho. Eu achava aquilo o fim do natal, e não sei como as crianças não tinham medo, porque o papai-noel era assustador e mais parecia um daqueles bonecos do Brinquedo Assassino. E pra mim aquilo era mais uma prova da bobagem que a religião tinha virado. Tudo bem que não sou mais católico, mas coitado do Jesus que de estrela principal da festa sumiu e deu lugar pro velho de vermelho; o que era pior: tinha que ser de vermelho.
Então, naquele ano, já que eu era sozinho e não gostava do natal mesmo, me dei mal e fui escalado pra ser um dos responsáveis da geringonça. Digo me dei mal porque coisa sofisticada no Brasil é assim: só serve pra dá merda e ferrar com a vida da gente. Só faltou eu morar no shopping naqueles dias, porque quando tudo fechava de noite, lá ia o Jerônimo fazer a manutenção, e abre papai-noel, e tira a cabeça de pingüim, e enfia chave de fenda na traseira do urso-polar. Sentia-me o Zé do Caixão fazendo um filme de terror, mas ainda tudo bem, isso não era nada, porque era minha função fazer manutenção de outras partes do shopping, e até era legal, porque eu podia ficar mais tempo perto da Solange. Pior era quando aquele festival de bizarrice eletrônica teimava de estragar bem no meio do expediente, porque aí lá ia o Jerônimo com sua escada e caixa de ferramenta, no meio do povaredo.
Um dia tive de ir quando ainda tinha uma função de gente olhando, um monte de pai com filho chorando porque o papai-noel e os pingüins não cantavam, e eu cheguei, deixei a escada no chão porque não ia precisar (só andava com ela pra fazer cena) e entrei no cercadinho. Já tinha todo mundo saído dali, e só ficou um pai com a filha pela mão:
- O que ele vai fazer papai?
- Vai cuidar do papai-noel.
- Ele vai dá remédio pra ele vai?
- Vai minha filha. Ele é o médico que cuida do papai-noel.
Eu olhei pro homem que tinha vindo com aquela história pra pobre da criança e pensei: tem coisa mais patética do que ser pai de criança nessa época do ano? Inventa cada história só pra não acabar com a magia do natal, mas enche a coitada de brinquedo e faz acreditar que essa é a idéia do natal, é uma merda. E o homem viu meu olhar de poucos amigos e ainda deu um sorrisinho safado e me pediu confirmação:
- Né que o senhor vai cuidar bem do papai-noel?
O azar dele foi que bem na hora eu já estava desrosqueando e tirando fora a cabeça do bom velhinho:
- É – eu disse, e tentava não rir porque a criança já começava a abrir o berreiro atrás de mim.
- Calma minha filha. É assim mesmo, ta vendo? É só um robô. O tio tem que fazer isso pra arrumar. Tá vendo? É só um robô. Já passou. Já passou.
A menina não queria saber de arrego e gritava:
- Mas você disse que era de verdade.
- Foi, mas não é minha filha. É só um robô, tá vendo?
Depois que a mãe veio buscar a menina, acho que o homem viu meu sorrisinho e ainda quis botar a culpa em mim.
- O senhor precisava ser tão insensível?
- Desculpe. Como?
- Tirar a cabeça do papai-noel assim, na frente da minha filha.
- Olha meu senhor, é a única maneira de arrumar.
- Mas podia ter sido mais delicado.
Então ele já estava me irritando, porque o coitado é obrigado a trabalhar no natal, tem que cuidar de uma geringonça medonha daquelas, e ainda ouvir desaforo de rico metido a besta?!
- Delicado como? Queria que eu pedisse com licença e me desculpe pro Papai Noel? Ninguém mandou inventar que isso era de verdade.
- O senhor não tem filhos não?
- Graças a Deus não.
- O senhor devia ser penalizado sabia?
- Penalizado por quê? Por que não tenho filhos? Ou por que to fazendo o meu trabalho?
Nessa hora nós dois já estávamos falando alto e algumas pessoas passavam olhando assustadas, e foi quando a Solange chegou perto.
- Algum problema, senhor?
- Esse funcionário aqui arrancou a cabeça do papai-noel na frente da minha filha, sem nenhum tipo de aviso ou vergonha.
- Mas é a única forma que ele tem de arrumar, senhor.
- É, mas ele podia ter sido mais delicado.
- Mais delicado como pelo amor de Deus?! Não fui eu que inventei esta merda. Devia era reclamar pra quem fez isso assim.
- Calma, Jerônimo. Deixa que eu resolvo – ela disse e saiu com o homem, e ele ainda me deu uma última olhada de cima a baixo, parecia querer mostrar que era mais alto, e que isso dava mais importância, mas quanto maior, maior a queda, eu pensei, e voltei pro meu bom velhinho decapitado, e ainda aproveitei e dei uma relanciada pra ver a Solange.
Ela era uma morena dos cabelos em cachos e bonita de só vê, eu ficava impressionado com a seriedade dela como segurança. Devia ser braba e forte pra burro, porque uma vez assisti dar uma chave de braço num malandro que fez ele se contorcer todo de dor. Então eu gostava do jeito que ela conseguia ser feminina até naquele uniforme, tinha pose, mas quando dava o sorrisinho, mostrava que era mulher mulher mesmo. E eu já fazia tempo que atirava minhas pedras pra ver se conseguia alguma coisa, mas parecia ser trabalho demorado aquele. E eu gostava de passar por ela com minha escada e a caixa de ferramentas porque ela sempre me olhava com mais atenção. E quando eu estava lá no alto, com meu cinturão de couro e mexendo nos fios, ela passava em baixo, eu dava uma olhadela e ela sempre sorria de volta como quem gostava de me ver trabalhando. Não sei, mas acho que lá em cima eu fazia figura bonita, parecia importante, mais perto do céu, ainda mais com meu uniforme e todos aqueles apetrechos pendurados, devia dar um ar diferente, de gente grande.
- Pega leva da próxima, Jero – ela disse quando voltou – tive que convencer o cliente a não dar queixa tua.
- Dar queixa? Mais e o que eu fiz de errado?
- Nada, mas se o cliente acha que fez, pede desculpa e continua fazendo teu trabalho.
- Mas e pedir desculpa por que se eu não fiz nada errado?
- Tá, mas sabe como é essa gente.
- E é por isso mesmo que eu não peço desculpa. Ele acha o que? Que só porque pode vir comprar presente pra filha dele no shopping é melhor do que eu? Ele não sabe que o dinheiro que ele gasta aqui, acaba pagando meu salário? Quer me ferrar? Vai compra em outro lugar.
- Minha nossa, Jero! Calma. Pra que ficar tão nervoso?
- Ah... Tem coisa que me deixa fulo.
- É o tal problema com o natal? Você acha mesmo tão ruim assim?
- O problema é essas pessoas que vêm aqui me aporrinhar por nada e depois vai lá desejar feliz natal e paz no mundo. Se todo mundo aceitasse que cada um tem sua função e seu lugar, pronto. Eu sei fazer isso aqui e faço. Ele que vá fazer sei lá o que. Ou eu por um acaso reclamei que ele é rico e ganha mais dinheiro do que eu? É só uma questão de viver e deixar o outro viver. Pronto
- Tá bom, Jero. Tá bom. Agora vai fazer teu trabalho antes que outra criança venha chorar porque o papai-noel tá sem cabeça.
- Isso que tu não viu o que eu vou fazer com os pingüins.
- Ai, ai, ai, Jero. Tu não presta mesmo – Ela disse rindo e indo embora.
Pronto, eu ganhei mais um ponto, porque mulher gosta de homem que sabe ser engraçado, até quando está irritado, e, além disso, eu tinha mostrado que era homem de verdade, que tinha sangue nas veias.
Claro que mais tarde tive que me reportar pro chefe pra explicar tudo direitinho, e ele até deu risada, e disse que esse povo era assim mesmo, mas que da próxima vez eu devia fazer como a Solange disse, porque o cliente tem sempre razão.
De noite eu fui com minha escada fazer a manutenção de sempre, e, quando passei pela Solange, recebi mais um sorriso, afinal eu era o assunto do dia no shopping. Todos os colegas dali achavam que eu tinha que ter mais cuidado, mas mesmo assim eles me apoiavam e concordavam que quem estava errado era o cara.
Eu estava me sentindo muito mais por cima do que em qualquer outro natal e fui fazer meu serviço cheio de mim. Então vem o que eu digo: na vida é assim, a natureza é que manda. Eu estava lá em cima, me achando o cara, me sentindo o grandão, a Solange passou lá em baixo, eu fui olhar pra ela, ela me deu um sorrisinho, eu dei uma piscadinha, e foi aí que aconteceu. Não sei se foi descuido meu, ou se tinha alguma coisa errada na fiação em cima do pinheiro, mas eu sei foi que levei um choque que me derrubou da escada e tomei um tombo que podia ter sido bem pior se eu não tivesse caído em cima do monte de neve, umas neves feitas de algodão e espuma que amaciaram o tombo. Eu rolei abaixo e só fui parar porque bati nos pingüins que estavam parafusados no chão. Então fiquei um tempo deitado, tempo que não me lembro de sentir nada que não fosse meu coração batendo de um jeito que parecia ser no corpo todo, e o resto era só uma sensação estranha como se tivesse dado apagão na cabeça da gente.
FIM DA PARTE I
Então, eu sempre pensei desse jeito: é a natureza que te diz se tu vai ser André Lima ou Renato Portalupe, tu pode até tentar fazer história, mas se tu nasceste pra ser mais um então não tem jeito, e eu vejo isso nos pássaros, como o rabo-de-palha: ele às vezes pega e faz o ninho no pinheiro, no meio dos espinhos e isso deve dar um trabalhão, mas depois que faz, ele fica tão protegido que não precisa mais se preocupar, está lá pronto, e só tem que procriar e aproveitar a vida cantando. Então eu olho o quero-quero: ele faz o ninho no meio do gramado, e é fácil e sem trabalho, mas se tu olhas depois, ele tem que passar o resto do tempo se incomodando e cuidando dos filhotes. Então tu sabes que quando ele canta não é de alegria, é de preocupação. E ninguém vai me convencer que podia ser diferente se o quero-quero quisesse; não ia ser. A natureza disse pra eles serem assim, e cada um é como tem que ser.
Era mais ou menos isso que eu pensava da vida: você tinha que jogar com as cartas que ela te dá, e as coisas são assim, e não dá pra ficar se iludindo com essas ideias de que pode fazer algo pra melhorar. Tu achas que a vida te dá alternativa (pinheiro ou grama) pra tu escolheres, mas não, porque é ela mesma que te leva pra um lado ou outro.
Por isso eu achava o natal uma merda, uma epocazinha que me deixava de mau humor, quando eu mais via que a natureza era filha da puta. E digo natureza porque já não acreditava mais em Deus. Até tinha sido criado numa família bem católica, mas eu mesmo já não era mais católico. A última vez que tinha me confessado foi quando roubei bolacha do pote de cima do armário, e foi tanta ave-maria e padre-nosso de castigo, que o padre deve ter mesmo achado que as bolachinhas eram caras. Mas o que me fez desistir foi aquela mania de me fazer acreditar naquele Deus de barba e roupão branco, ou naquele Jesus dos olhos azuis, porque isso era muito difícil de engolir. Acreditar que o mundo foi criado por esse camarada? Não sei, mas era muito chato rezar imaginando falar com aquelas figuras dos santos e aquele Deus, umas imagens que não me diziam nada, até porque me fazia lembrar o papa, e esse camarada nunca me desceu. Por isso achei que era melhor acreditar em alguma coisa do tipo “natureza”, que mandava em tudo.
Então, como eu dizia, achava que o natal era epocazinha medonha porque trabalho num shopping, e não tem lugar mais certo pra se ver como o homem é bicho desgraçado. Passar os dias no shopping era provar que Deus não existia mais. Era difícil pensar que Ele tinha criado os homens pra ficarem andando e olhando vitrine e comprando coisa. Se a vida era isso, eu achava que ou Deus não existia, ou ele estava muito errado. E tudo isso eu achava até aquele natal, quando aconteceu uma coisa que me fez pensar.
Foi no meu primeiro natal trabalhando no shopping Barra Sul, um shopping muito, mas muito grande que abriu em Porto Alegre, um troço gigante. E a empresa onde eu trabalho cuida da parte elétrica de lá, e aquele era o primeiro natal do tal Barra Sul Shopping Center, e decidiram colocar um enfeite modernoso lá no meio: tipo uma ilha num entroncamento de corredores, cheio de presentes, papais-noéis, ursos-polares e pingüins, e tinha até papai-noel que girava um bebe urso-polar (só faltava uma coca-cola na mão), e num dos lados desse negócio tinha um papai-noel que se mexia, tocava flauta, piscava e cantava com um coral de pingüins mexendo a cabeça, um troço pra lá de medonho. Eu achava aquilo o fim do natal, e não sei como as crianças não tinham medo, porque o papai-noel era assustador e mais parecia um daqueles bonecos do Brinquedo Assassino. E pra mim aquilo era mais uma prova da bobagem que a religião tinha virado. Tudo bem que não sou mais católico, mas coitado do Jesus que de estrela principal da festa sumiu e deu lugar pro velho de vermelho; o que era pior: tinha que ser de vermelho.
Então, naquele ano, já que eu era sozinho e não gostava do natal mesmo, me dei mal e fui escalado pra ser um dos responsáveis da geringonça. Digo me dei mal porque coisa sofisticada no Brasil é assim: só serve pra dá merda e ferrar com a vida da gente. Só faltou eu morar no shopping naqueles dias, porque quando tudo fechava de noite, lá ia o Jerônimo fazer a manutenção, e abre papai-noel, e tira a cabeça de pingüim, e enfia chave de fenda na traseira do urso-polar. Sentia-me o Zé do Caixão fazendo um filme de terror, mas ainda tudo bem, isso não era nada, porque era minha função fazer manutenção de outras partes do shopping, e até era legal, porque eu podia ficar mais tempo perto da Solange. Pior era quando aquele festival de bizarrice eletrônica teimava de estragar bem no meio do expediente, porque aí lá ia o Jerônimo com sua escada e caixa de ferramenta, no meio do povaredo.
Um dia tive de ir quando ainda tinha uma função de gente olhando, um monte de pai com filho chorando porque o papai-noel e os pingüins não cantavam, e eu cheguei, deixei a escada no chão porque não ia precisar (só andava com ela pra fazer cena) e entrei no cercadinho. Já tinha todo mundo saído dali, e só ficou um pai com a filha pela mão:
- O que ele vai fazer papai?
- Vai cuidar do papai-noel.
- Ele vai dá remédio pra ele vai?
- Vai minha filha. Ele é o médico que cuida do papai-noel.
Eu olhei pro homem que tinha vindo com aquela história pra pobre da criança e pensei: tem coisa mais patética do que ser pai de criança nessa época do ano? Inventa cada história só pra não acabar com a magia do natal, mas enche a coitada de brinquedo e faz acreditar que essa é a idéia do natal, é uma merda. E o homem viu meu olhar de poucos amigos e ainda deu um sorrisinho safado e me pediu confirmação:
- Né que o senhor vai cuidar bem do papai-noel?
O azar dele foi que bem na hora eu já estava desrosqueando e tirando fora a cabeça do bom velhinho:
- É – eu disse, e tentava não rir porque a criança já começava a abrir o berreiro atrás de mim.
- Calma minha filha. É assim mesmo, ta vendo? É só um robô. O tio tem que fazer isso pra arrumar. Tá vendo? É só um robô. Já passou. Já passou.
A menina não queria saber de arrego e gritava:
- Mas você disse que era de verdade.
- Foi, mas não é minha filha. É só um robô, tá vendo?
Depois que a mãe veio buscar a menina, acho que o homem viu meu sorrisinho e ainda quis botar a culpa em mim.
- O senhor precisava ser tão insensível?
- Desculpe. Como?
- Tirar a cabeça do papai-noel assim, na frente da minha filha.
- Olha meu senhor, é a única maneira de arrumar.
- Mas podia ter sido mais delicado.
Então ele já estava me irritando, porque o coitado é obrigado a trabalhar no natal, tem que cuidar de uma geringonça medonha daquelas, e ainda ouvir desaforo de rico metido a besta?!
- Delicado como? Queria que eu pedisse com licença e me desculpe pro Papai Noel? Ninguém mandou inventar que isso era de verdade.
- O senhor não tem filhos não?
- Graças a Deus não.
- O senhor devia ser penalizado sabia?
- Penalizado por quê? Por que não tenho filhos? Ou por que to fazendo o meu trabalho?
Nessa hora nós dois já estávamos falando alto e algumas pessoas passavam olhando assustadas, e foi quando a Solange chegou perto.
- Algum problema, senhor?
- Esse funcionário aqui arrancou a cabeça do papai-noel na frente da minha filha, sem nenhum tipo de aviso ou vergonha.
- Mas é a única forma que ele tem de arrumar, senhor.
- É, mas ele podia ter sido mais delicado.
- Mais delicado como pelo amor de Deus?! Não fui eu que inventei esta merda. Devia era reclamar pra quem fez isso assim.
- Calma, Jerônimo. Deixa que eu resolvo – ela disse e saiu com o homem, e ele ainda me deu uma última olhada de cima a baixo, parecia querer mostrar que era mais alto, e que isso dava mais importância, mas quanto maior, maior a queda, eu pensei, e voltei pro meu bom velhinho decapitado, e ainda aproveitei e dei uma relanciada pra ver a Solange.
Ela era uma morena dos cabelos em cachos e bonita de só vê, eu ficava impressionado com a seriedade dela como segurança. Devia ser braba e forte pra burro, porque uma vez assisti dar uma chave de braço num malandro que fez ele se contorcer todo de dor. Então eu gostava do jeito que ela conseguia ser feminina até naquele uniforme, tinha pose, mas quando dava o sorrisinho, mostrava que era mulher mulher mesmo. E eu já fazia tempo que atirava minhas pedras pra ver se conseguia alguma coisa, mas parecia ser trabalho demorado aquele. E eu gostava de passar por ela com minha escada e a caixa de ferramentas porque ela sempre me olhava com mais atenção. E quando eu estava lá no alto, com meu cinturão de couro e mexendo nos fios, ela passava em baixo, eu dava uma olhadela e ela sempre sorria de volta como quem gostava de me ver trabalhando. Não sei, mas acho que lá em cima eu fazia figura bonita, parecia importante, mais perto do céu, ainda mais com meu uniforme e todos aqueles apetrechos pendurados, devia dar um ar diferente, de gente grande.
- Pega leva da próxima, Jero – ela disse quando voltou – tive que convencer o cliente a não dar queixa tua.
- Dar queixa? Mais e o que eu fiz de errado?
- Nada, mas se o cliente acha que fez, pede desculpa e continua fazendo teu trabalho.
- Mas e pedir desculpa por que se eu não fiz nada errado?
- Tá, mas sabe como é essa gente.
- E é por isso mesmo que eu não peço desculpa. Ele acha o que? Que só porque pode vir comprar presente pra filha dele no shopping é melhor do que eu? Ele não sabe que o dinheiro que ele gasta aqui, acaba pagando meu salário? Quer me ferrar? Vai compra em outro lugar.
- Minha nossa, Jero! Calma. Pra que ficar tão nervoso?
- Ah... Tem coisa que me deixa fulo.
- É o tal problema com o natal? Você acha mesmo tão ruim assim?
- O problema é essas pessoas que vêm aqui me aporrinhar por nada e depois vai lá desejar feliz natal e paz no mundo. Se todo mundo aceitasse que cada um tem sua função e seu lugar, pronto. Eu sei fazer isso aqui e faço. Ele que vá fazer sei lá o que. Ou eu por um acaso reclamei que ele é rico e ganha mais dinheiro do que eu? É só uma questão de viver e deixar o outro viver. Pronto
- Tá bom, Jero. Tá bom. Agora vai fazer teu trabalho antes que outra criança venha chorar porque o papai-noel tá sem cabeça.
- Isso que tu não viu o que eu vou fazer com os pingüins.
- Ai, ai, ai, Jero. Tu não presta mesmo – Ela disse rindo e indo embora.
Pronto, eu ganhei mais um ponto, porque mulher gosta de homem que sabe ser engraçado, até quando está irritado, e, além disso, eu tinha mostrado que era homem de verdade, que tinha sangue nas veias.
Claro que mais tarde tive que me reportar pro chefe pra explicar tudo direitinho, e ele até deu risada, e disse que esse povo era assim mesmo, mas que da próxima vez eu devia fazer como a Solange disse, porque o cliente tem sempre razão.
De noite eu fui com minha escada fazer a manutenção de sempre, e, quando passei pela Solange, recebi mais um sorriso, afinal eu era o assunto do dia no shopping. Todos os colegas dali achavam que eu tinha que ter mais cuidado, mas mesmo assim eles me apoiavam e concordavam que quem estava errado era o cara.
Eu estava me sentindo muito mais por cima do que em qualquer outro natal e fui fazer meu serviço cheio de mim. Então vem o que eu digo: na vida é assim, a natureza é que manda. Eu estava lá em cima, me achando o cara, me sentindo o grandão, a Solange passou lá em baixo, eu fui olhar pra ela, ela me deu um sorrisinho, eu dei uma piscadinha, e foi aí que aconteceu. Não sei se foi descuido meu, ou se tinha alguma coisa errada na fiação em cima do pinheiro, mas eu sei foi que levei um choque que me derrubou da escada e tomei um tombo que podia ter sido bem pior se eu não tivesse caído em cima do monte de neve, umas neves feitas de algodão e espuma que amaciaram o tombo. Eu rolei abaixo e só fui parar porque bati nos pingüins que estavam parafusados no chão. Então fiquei um tempo deitado, tempo que não me lembro de sentir nada que não fosse meu coração batendo de um jeito que parecia ser no corpo todo, e o resto era só uma sensação estranha como se tivesse dado apagão na cabeça da gente.
FIM DA PARTE I
sábado, 22 de dezembro de 2012
Da Morte da Educação Humanística. Ou Por Que a Educação Não Pode se Tornar Utilitarista
A questão a ser aqui colocada é quanto ao sucateamento que deixa definhar a educação humanística. Pensemos não em humanística no sentido de educação redentora capaz de libertar os homens e torná-los todos intelectuais salvadores da pátria, mas sim na educação que ajuda o homem a ser humano, fazendo-o pensar não apenas técnica e utilitariamente, mas também pensar na vida em sociedade e nas relações pessoais.
Recentemente um estudante de direito de São Paulo foi agredido na rua por causa da sua opção sexual. O rapaz, militante da causa gay, disse que os agressores o provocaram, e ele respondeu à provocação por não aceitar que sua sexualidade deva ser alvo de xingamentos. Foi aí que os dois jovens partiram para a agressão física. Na sua entrevista, o rapaz questiona por que duas pessoas bem de vida, jovens, seriam capaz de entrar com o carro na contramão para atentar contra a vida de alguém que queria apenas chegar em casa. “Que fúria é essa que faz um cara que deve ter tido todas as oportunidades do mundo a bater em outra de forma tão agressiva? Por que a minha existência provoca uma fúria tão desumana?” Este questionamento perplexo bate num fundo problemático de nossa sociedade, e que poderíamos colocar em outras palavras assim: por que dois estudantes, com casa própria, carro, enfim, jovens que – dentro da terrível lógica da nossa sociedade atual – deveriam ter uma boa educação, tiveram uma atitude tão “primitiva” como essa?
Essa pergunta, acredito eu, serve para provocar a reflexão que quero trazer. Cada vez mais nós parecemos nos impressionar com as atitudes das outras pessoas, ou com o modo de pensar delas. Cada vez mais parece que estamos diante de um tempo em que o individualismo superou o respeito ao próximo. Isso tudo pode nos parecer absurdo, e ficamos a nos perguntar como comportamentos e pensamentos assim podem ainda existir num mundo tão moderno e avançado. O problema é que tendemos a confundir o avanço técnico-científico com o avanço ético e moral, o avanço tecnológico com o avanço humano. Porém, uma coisa não tem necessariamente relação com a outra. Já está mais do que provado de que a evolução do homem na área tecnológica não implica que estejamos também evoluindo como pessoas. O Século XX cansou de nos provar isso: suas duas grandes guerras e todas as suas outras tragédias nos mostraram que quanto mais marchamos para o aprimoramento da técnica, mais regredimos na capacidade de entender o outro e conviver com ele. O caso mais emblemático desse descompasso está no fenômeno que estamos vendo acontecer já há muito tempo e, ainda hoje, temos que, vergonhosamente, encarar: o sucateamento da educação humanística em detrimento do investimento na educação técnico-científica.
Em matéria do O Globo de hoje, ficamos sabendo que as ciências humanas perderam sua chance – já antes bem pequena, diga-se de passagem – de participar do programa Ciência Sem Fronteiras, que concede bolsas para graduação e pós no exterior. Isso é apenas mais um dos casos que ilustra o total desamparo das ciências humanas em relação às outras áreas do ensino. Qualquer pessoa que visitar o Instituto de Letras da UFRGS e depois for ao Instituto de Física (cito a UFRGS como exemplo porque conheço sua realidade) verá o abismo de qualidade na estrutura dos cursos. E isso você verá em outros Institutos ou Faculdades na área das humanas se comparados com qualquer outra área tecnológica – exceto algumas áreas etiquetadas como humanas, mas que acabam tendo investimentos maiores, pois dão mais “resultado” para a sociedade, como o Direito, a Economia entre outros.
E o problema não está apenas nas faculdades, mas também nas escolas, que recebem muito mais incentivo para o desenvolvimento dos cursos técnicos do que para as matérias “tradicionais” do currículo. Um pensamento utilitário terrível que acaba sendo internalizando pelos próprios alunos que se perguntam por que precisam estudar literatura, história, filosofia, sociologia ou geografia, em vez de aprenderem aquilo que sirva para eles quando forem entrar no mercado de trabalho.
A lógica assustadora por trás disso tudo é que a área das humanas não produz conhecimento “prático” e “útil” para a sociedade, pois, cada vez mais, o mercado e o sistema econômico em que vivemos pedem por profissionais com capacidades técnicas, mas não necessariamente capazes de pensar ou de saber viver em sociedade. Precisamos apenas de mais mão de obra que atendam a demanda do mercado, mas que não sejam capazes de saber respeitar o outro ou refletir sobre o mundo que nos rodeia, porque, obviamente, esse tipo de pensamento é inútil e não produz resultados. Cada vez mais, a educação, o ensino que prepara o aluno para ser humano é dispensável, pois não queremos mais pessoas no mundo, apenas novos autômatos.
É claro que a educação que eu chamo de humanística não é a salvadora do mundo. Mas ela é capaz de ajudar as pessoas a pensarem o mundo a sua volta, tornando-as capazes de conviver melhor entre si. Não estou dizendo que ela cura as mazelas, mas ajuda a desenvolver nas pessoas a capacidade de interpretar e compreender melhor a vida em sociedade, pois ela estabelece as bases para que sejamos capazes de enxergar no outro um ser humano como nós. O homem está constantemente interpretando as coisas a sua volta para tentar compreender melhor o mundo e saber como agir nele. Se insistirmos em uma educação voltada apenas para a técnica, com uma lógica meramente utilitária, é esse tipo de visão que vamos criar nos alunos, e é assim que eles passarão a interpretar o mundo: apenas utilitariamente, vendo o outro como algo que tem uma utilidade e não como uma pessoa igual a mim, que merece respeito e merece ser tratado como eu quero ser tratado.
Obviamente precisamos de investimentos na área técnica, precisamos possibilitar a nossos alunos sua entrada no mundo de trabalho, precisamos de mais e mais profissionais nessas áreas “práticas”. Acho que o investimento nas áreas tecnológicas é legítimo e deve continuar. O que não pode acontecer é simplesmente acabar com a educação humana; algo que está sendo feito gradativamente e silenciosamente, sem que ninguém perceba e se tornando cada vez mais natural – o que é ainda mais assustador.
Não podemos simplesmente achar que os cursos das artes e das humanas não merecem investimentos ou que não precisam de infraestrutura porque não produzem conhecimento útil para o mercado; afinal, eles produzem o conhecimento útil para a sociedade, e não vejo como podemos viver sem isso. Não vejo como podemos produzir cada vez mais engenheiros capazes de construir pontes perfeitas e seguras, mas incapazes de criar pontes entre ele e o outro do seu lado; como podemos produzir cada vez mais cirurgiões competentíssimos, mas incapazes de respeitar seus pacientes ou conviver com seus colegas; produzir mais especialistas em Tecnologia da Informação, mas incapazes de se comunicar com as pessoas a sua volta.
Se continuarmos insistindo nesse pensamento utilitarista da educação, continuaremos nos surpreendendo com jovens como aqueles que espancaram alguém só por causa da sua opção sexual. Continuaremos a ver o mundo avançando em tecnologias, mas regredindo em humanidade. Como escreveu Beatriz Sarlo, lembrando Gramsci e o caso da Itália já no início do século passado, a cultura humanística deve ser defendida não como um luxo, mas como uma necessidade.
Recentemente um estudante de direito de São Paulo foi agredido na rua por causa da sua opção sexual. O rapaz, militante da causa gay, disse que os agressores o provocaram, e ele respondeu à provocação por não aceitar que sua sexualidade deva ser alvo de xingamentos. Foi aí que os dois jovens partiram para a agressão física. Na sua entrevista, o rapaz questiona por que duas pessoas bem de vida, jovens, seriam capaz de entrar com o carro na contramão para atentar contra a vida de alguém que queria apenas chegar em casa. “Que fúria é essa que faz um cara que deve ter tido todas as oportunidades do mundo a bater em outra de forma tão agressiva? Por que a minha existência provoca uma fúria tão desumana?” Este questionamento perplexo bate num fundo problemático de nossa sociedade, e que poderíamos colocar em outras palavras assim: por que dois estudantes, com casa própria, carro, enfim, jovens que – dentro da terrível lógica da nossa sociedade atual – deveriam ter uma boa educação, tiveram uma atitude tão “primitiva” como essa?
Essa pergunta, acredito eu, serve para provocar a reflexão que quero trazer. Cada vez mais nós parecemos nos impressionar com as atitudes das outras pessoas, ou com o modo de pensar delas. Cada vez mais parece que estamos diante de um tempo em que o individualismo superou o respeito ao próximo. Isso tudo pode nos parecer absurdo, e ficamos a nos perguntar como comportamentos e pensamentos assim podem ainda existir num mundo tão moderno e avançado. O problema é que tendemos a confundir o avanço técnico-científico com o avanço ético e moral, o avanço tecnológico com o avanço humano. Porém, uma coisa não tem necessariamente relação com a outra. Já está mais do que provado de que a evolução do homem na área tecnológica não implica que estejamos também evoluindo como pessoas. O Século XX cansou de nos provar isso: suas duas grandes guerras e todas as suas outras tragédias nos mostraram que quanto mais marchamos para o aprimoramento da técnica, mais regredimos na capacidade de entender o outro e conviver com ele. O caso mais emblemático desse descompasso está no fenômeno que estamos vendo acontecer já há muito tempo e, ainda hoje, temos que, vergonhosamente, encarar: o sucateamento da educação humanística em detrimento do investimento na educação técnico-científica.
Em matéria do O Globo de hoje, ficamos sabendo que as ciências humanas perderam sua chance – já antes bem pequena, diga-se de passagem – de participar do programa Ciência Sem Fronteiras, que concede bolsas para graduação e pós no exterior. Isso é apenas mais um dos casos que ilustra o total desamparo das ciências humanas em relação às outras áreas do ensino. Qualquer pessoa que visitar o Instituto de Letras da UFRGS e depois for ao Instituto de Física (cito a UFRGS como exemplo porque conheço sua realidade) verá o abismo de qualidade na estrutura dos cursos. E isso você verá em outros Institutos ou Faculdades na área das humanas se comparados com qualquer outra área tecnológica – exceto algumas áreas etiquetadas como humanas, mas que acabam tendo investimentos maiores, pois dão mais “resultado” para a sociedade, como o Direito, a Economia entre outros.
E o problema não está apenas nas faculdades, mas também nas escolas, que recebem muito mais incentivo para o desenvolvimento dos cursos técnicos do que para as matérias “tradicionais” do currículo. Um pensamento utilitário terrível que acaba sendo internalizando pelos próprios alunos que se perguntam por que precisam estudar literatura, história, filosofia, sociologia ou geografia, em vez de aprenderem aquilo que sirva para eles quando forem entrar no mercado de trabalho.
A lógica assustadora por trás disso tudo é que a área das humanas não produz conhecimento “prático” e “útil” para a sociedade, pois, cada vez mais, o mercado e o sistema econômico em que vivemos pedem por profissionais com capacidades técnicas, mas não necessariamente capazes de pensar ou de saber viver em sociedade. Precisamos apenas de mais mão de obra que atendam a demanda do mercado, mas que não sejam capazes de saber respeitar o outro ou refletir sobre o mundo que nos rodeia, porque, obviamente, esse tipo de pensamento é inútil e não produz resultados. Cada vez mais, a educação, o ensino que prepara o aluno para ser humano é dispensável, pois não queremos mais pessoas no mundo, apenas novos autômatos.
É claro que a educação que eu chamo de humanística não é a salvadora do mundo. Mas ela é capaz de ajudar as pessoas a pensarem o mundo a sua volta, tornando-as capazes de conviver melhor entre si. Não estou dizendo que ela cura as mazelas, mas ajuda a desenvolver nas pessoas a capacidade de interpretar e compreender melhor a vida em sociedade, pois ela estabelece as bases para que sejamos capazes de enxergar no outro um ser humano como nós. O homem está constantemente interpretando as coisas a sua volta para tentar compreender melhor o mundo e saber como agir nele. Se insistirmos em uma educação voltada apenas para a técnica, com uma lógica meramente utilitária, é esse tipo de visão que vamos criar nos alunos, e é assim que eles passarão a interpretar o mundo: apenas utilitariamente, vendo o outro como algo que tem uma utilidade e não como uma pessoa igual a mim, que merece respeito e merece ser tratado como eu quero ser tratado.
Obviamente precisamos de investimentos na área técnica, precisamos possibilitar a nossos alunos sua entrada no mundo de trabalho, precisamos de mais e mais profissionais nessas áreas “práticas”. Acho que o investimento nas áreas tecnológicas é legítimo e deve continuar. O que não pode acontecer é simplesmente acabar com a educação humana; algo que está sendo feito gradativamente e silenciosamente, sem que ninguém perceba e se tornando cada vez mais natural – o que é ainda mais assustador.
Não podemos simplesmente achar que os cursos das artes e das humanas não merecem investimentos ou que não precisam de infraestrutura porque não produzem conhecimento útil para o mercado; afinal, eles produzem o conhecimento útil para a sociedade, e não vejo como podemos viver sem isso. Não vejo como podemos produzir cada vez mais engenheiros capazes de construir pontes perfeitas e seguras, mas incapazes de criar pontes entre ele e o outro do seu lado; como podemos produzir cada vez mais cirurgiões competentíssimos, mas incapazes de respeitar seus pacientes ou conviver com seus colegas; produzir mais especialistas em Tecnologia da Informação, mas incapazes de se comunicar com as pessoas a sua volta.
Se continuarmos insistindo nesse pensamento utilitarista da educação, continuaremos nos surpreendendo com jovens como aqueles que espancaram alguém só por causa da sua opção sexual. Continuaremos a ver o mundo avançando em tecnologias, mas regredindo em humanidade. Como escreveu Beatriz Sarlo, lembrando Gramsci e o caso da Itália já no início do século passado, a cultura humanística deve ser defendida não como um luxo, mas como uma necessidade.
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