segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Um Conto de Natal em Duas Partes

Dedicado a Charles Dickens

Então, eu sempre pensei desse jeito: é a natureza que te diz se tu vai ser André Lima ou Renato Portalupe, tu pode até tentar fazer história, mas se tu nasceste pra ser mais um então não tem jeito, e eu vejo isso nos pássaros, como o rabo-de-palha: ele às vezes pega e faz o ninho no pinheiro, no meio dos espinhos e isso deve dar um trabalhão, mas depois que faz, ele fica tão protegido que não precisa mais se preocupar, está lá pronto, e só tem que procriar e aproveitar a vida cantando. Então eu olho o quero-quero: ele faz o ninho no meio do gramado, e é fácil e sem trabalho, mas se tu olhas depois, ele tem que passar o resto do tempo se incomodando e cuidando dos filhotes. Então tu sabes que quando ele canta não é de alegria, é de preocupação. E ninguém vai me convencer que podia ser diferente se o quero-quero quisesse; não ia ser. A natureza disse pra eles serem assim, e cada um é como tem que ser.

Era mais ou menos isso que eu pensava da vida: você tinha que jogar com as cartas que ela te dá, e as coisas são assim, e não dá pra ficar se iludindo com essas ideias de que pode fazer algo pra melhorar. Tu achas que a vida te dá alternativa (pinheiro ou grama) pra tu escolheres, mas não, porque é ela mesma que te leva pra um lado ou outro.

Por isso eu achava o natal uma merda, uma epocazinha que me deixava de mau humor, quando eu mais via que a natureza era filha da puta. E digo natureza porque já não acreditava mais em Deus. Até tinha sido criado numa família bem católica, mas eu mesmo já não era mais católico. A última vez que tinha me confessado foi quando roubei bolacha do pote de cima do armário, e foi tanta ave-maria e padre-nosso de castigo, que o padre deve ter mesmo achado que as bolachinhas eram caras. Mas o que me fez desistir foi aquela mania de me fazer acreditar naquele Deus de barba e roupão branco, ou naquele Jesus dos olhos azuis, porque isso era muito difícil de engolir. Acreditar que o mundo foi criado por esse camarada? Não sei, mas era muito chato rezar imaginando falar com aquelas figuras dos santos e aquele Deus, umas imagens que não me diziam nada, até porque me fazia lembrar o papa, e esse camarada nunca me desceu. Por isso achei que era melhor acreditar em alguma coisa do tipo “natureza”, que mandava em tudo.

Então, como eu dizia, achava que o natal era epocazinha medonha porque trabalho num shopping, e não tem lugar mais certo pra se ver como o homem é bicho desgraçado. Passar os dias no shopping era provar que Deus não existia mais. Era difícil pensar que Ele tinha criado os homens pra ficarem andando e olhando vitrine e comprando coisa. Se a vida era isso, eu achava que ou Deus não existia, ou ele estava muito errado. E tudo isso eu achava até aquele natal, quando aconteceu uma coisa que me fez pensar.

Foi no meu primeiro natal trabalhando no shopping Barra Sul, um shopping muito, mas muito grande que abriu em Porto Alegre, um troço gigante. E a empresa onde eu trabalho cuida da parte elétrica de lá, e aquele era o primeiro natal do tal Barra Sul Shopping Center, e decidiram colocar um enfeite modernoso lá no meio: tipo uma ilha num entroncamento de corredores, cheio de presentes, papais-noéis, ursos-polares e pingüins, e tinha até papai-noel que girava um bebe urso-polar (só faltava uma coca-cola na mão), e num dos lados desse negócio tinha um papai-noel que se mexia, tocava flauta, piscava e cantava com um coral de pingüins mexendo a cabeça, um troço pra lá de medonho. Eu achava aquilo o fim do natal, e não sei como as crianças não tinham medo, porque o papai-noel era assustador e mais parecia um daqueles bonecos do Brinquedo Assassino. E pra mim aquilo era mais uma prova da bobagem que a religião tinha virado. Tudo bem que não sou mais católico, mas coitado do Jesus que de estrela principal da festa sumiu e deu lugar pro velho de vermelho; o que era pior: tinha que ser de vermelho.

Então, naquele ano, já que eu era sozinho e não gostava do natal mesmo, me dei mal e fui escalado pra ser um dos responsáveis da geringonça. Digo me dei mal porque coisa sofisticada no Brasil é assim: só serve pra dá merda e ferrar com a vida da gente. Só faltou eu morar no shopping naqueles dias, porque quando tudo fechava de noite, lá ia o Jerônimo fazer a manutenção, e abre papai-noel, e tira a cabeça de pingüim, e enfia chave de fenda na traseira do urso-polar. Sentia-me o Zé do Caixão fazendo um filme de terror, mas ainda tudo bem, isso não era nada, porque era minha função fazer manutenção de outras partes do shopping, e até era legal, porque eu podia ficar mais tempo perto da Solange. Pior era quando aquele festival de bizarrice eletrônica teimava de estragar bem no meio do expediente, porque aí lá ia o Jerônimo com sua escada e caixa de ferramenta, no meio do povaredo.

Um dia tive de ir quando ainda tinha uma função de gente olhando, um monte de pai com filho chorando porque o papai-noel e os pingüins não cantavam, e eu cheguei, deixei a escada no chão porque não ia precisar (só andava com ela pra fazer cena) e entrei no cercadinho. Já tinha todo mundo saído dali, e só ficou um pai com a filha pela mão:
- O que ele vai fazer papai?
- Vai cuidar do papai-noel.
- Ele vai dá remédio pra ele vai?
- Vai minha filha. Ele é o médico que cuida do papai-noel.

Eu olhei pro homem que tinha vindo com aquela história pra pobre da criança e pensei: tem coisa mais patética do que ser pai de criança nessa época do ano? Inventa cada história só pra não acabar com a magia do natal, mas enche a coitada de brinquedo e faz acreditar que essa é a idéia do natal, é uma merda. E o homem viu meu olhar de poucos amigos e ainda deu um sorrisinho safado e me pediu confirmação:
- Né que o senhor vai cuidar bem do papai-noel?

O azar dele foi que bem na hora eu já estava desrosqueando e tirando fora a cabeça do bom velhinho:
- É – eu disse, e tentava não rir porque a criança já começava a abrir o berreiro atrás de mim.
- Calma minha filha. É assim mesmo, ta vendo? É só um robô. O tio tem que fazer isso pra arrumar. Tá vendo? É só um robô. Já passou. Já passou.
A menina não queria saber de arrego e gritava:
- Mas você disse que era de verdade.
- Foi, mas não é minha filha. É só um robô, tá vendo?

Depois que a mãe veio buscar a menina, acho que o homem viu meu sorrisinho e ainda quis botar a culpa em mim.
- O senhor precisava ser tão insensível?
- Desculpe. Como?
- Tirar a cabeça do papai-noel assim, na frente da minha filha.
- Olha meu senhor, é a única maneira de arrumar.
- Mas podia ter sido mais delicado.

Então ele já estava me irritando, porque o coitado é obrigado a trabalhar no natal, tem que cuidar de uma geringonça medonha daquelas, e ainda ouvir desaforo de rico metido a besta?!
- Delicado como? Queria que eu pedisse com licença e me desculpe pro Papai Noel? Ninguém mandou inventar que isso era de verdade.
- O senhor não tem filhos não?
- Graças a Deus não.
- O senhor devia ser penalizado sabia?
- Penalizado por quê? Por que não tenho filhos? Ou por que to fazendo o meu trabalho?

Nessa hora nós dois já estávamos falando alto e algumas pessoas passavam olhando assustadas, e foi quando a Solange chegou perto.
- Algum problema, senhor?
- Esse funcionário aqui arrancou a cabeça do papai-noel na frente da minha filha, sem nenhum tipo de aviso ou vergonha.
- Mas é a única forma que ele tem de arrumar, senhor.
- É, mas ele podia ter sido mais delicado.
- Mais delicado como pelo amor de Deus?! Não fui eu que inventei esta merda. Devia era reclamar pra quem fez isso assim.
- Calma, Jerônimo. Deixa que eu resolvo – ela disse e saiu com o homem, e ele ainda me deu uma última olhada de cima a baixo, parecia querer mostrar que era mais alto, e que isso dava mais importância, mas quanto maior, maior a queda, eu pensei, e voltei pro meu bom velhinho decapitado, e ainda aproveitei e dei uma relanciada pra ver a Solange.

Ela era uma morena dos cabelos em cachos e bonita de só vê, eu ficava impressionado com a seriedade dela como segurança. Devia ser braba e forte pra burro, porque uma vez assisti dar uma chave de braço num malandro que fez ele se contorcer todo de dor. Então eu gostava do jeito que ela conseguia ser feminina até naquele uniforme, tinha pose, mas quando dava o sorrisinho, mostrava que era mulher mulher mesmo. E eu já fazia tempo que atirava minhas pedras pra ver se conseguia alguma coisa, mas parecia ser trabalho demorado aquele. E eu gostava de passar por ela com minha escada e a caixa de ferramentas porque ela sempre me olhava com mais atenção. E quando eu estava lá no alto, com meu cinturão de couro e mexendo nos fios, ela passava em baixo, eu dava uma olhadela e ela sempre sorria de volta como quem gostava de me ver trabalhando. Não sei, mas acho que lá em cima eu fazia figura bonita, parecia importante, mais perto do céu, ainda mais com meu uniforme e todos aqueles apetrechos pendurados, devia dar um ar diferente, de gente grande.
- Pega leva da próxima, Jero – ela disse quando voltou – tive que convencer o cliente a não dar queixa tua.
- Dar queixa? Mais e o que eu fiz de errado?
- Nada, mas se o cliente acha que fez, pede desculpa e continua fazendo teu trabalho.
- Mas e pedir desculpa por que se eu não fiz nada errado?
- Tá, mas sabe como é essa gente.
- E é por isso mesmo que eu não peço desculpa. Ele acha o que? Que só porque pode vir comprar presente pra filha dele no shopping é melhor do que eu? Ele não sabe que o dinheiro que ele gasta aqui, acaba pagando meu salário? Quer me ferrar? Vai compra em outro lugar.
- Minha nossa, Jero! Calma. Pra que ficar tão nervoso?
- Ah... Tem coisa que me deixa fulo.
- É o tal problema com o natal? Você acha mesmo tão ruim assim?
- O problema é essas pessoas que vêm aqui me aporrinhar por nada e depois vai lá desejar feliz natal e paz no mundo. Se todo mundo aceitasse que cada um tem sua função e seu lugar, pronto. Eu sei fazer isso aqui e faço. Ele que vá fazer sei lá o que. Ou eu por um acaso reclamei que ele é rico e ganha mais dinheiro do que eu? É só uma questão de viver e deixar o outro viver. Pronto
- Tá bom, Jero. Tá bom. Agora vai fazer teu trabalho antes que outra criança venha chorar porque o papai-noel tá sem cabeça.
- Isso que tu não viu o que eu vou fazer com os pingüins.
- Ai, ai, ai, Jero. Tu não presta mesmo – Ela disse rindo e indo embora.

Pronto, eu ganhei mais um ponto, porque mulher gosta de homem que sabe ser engraçado, até quando está irritado, e, além disso, eu tinha mostrado que era homem de verdade, que tinha sangue nas veias.

Claro que mais tarde tive que me reportar pro chefe pra explicar tudo direitinho, e ele até deu risada, e disse que esse povo era assim mesmo, mas que da próxima vez eu devia fazer como a Solange disse, porque o cliente tem sempre razão.
De noite eu fui com minha escada fazer a manutenção de sempre, e, quando passei pela Solange, recebi mais um sorriso, afinal eu era o assunto do dia no shopping. Todos os colegas dali achavam que eu tinha que ter mais cuidado, mas mesmo assim eles me apoiavam e concordavam que quem estava errado era o cara.

Eu estava me sentindo muito mais por cima do que em qualquer outro natal e fui fazer meu serviço cheio de mim. Então vem o que eu digo: na vida é assim, a natureza é que manda. Eu estava lá em cima, me achando o cara, me sentindo o grandão, a Solange passou lá em baixo, eu fui olhar pra ela, ela me deu um sorrisinho, eu dei uma piscadinha, e foi aí que aconteceu. Não sei se foi descuido meu, ou se tinha alguma coisa errada na fiação em cima do pinheiro, mas eu sei foi que levei um choque que me derrubou da escada e tomei um tombo que podia ter sido bem pior se eu não tivesse caído em cima do monte de neve, umas neves feitas de algodão e espuma que amaciaram o tombo. Eu rolei abaixo e só fui parar porque bati nos pingüins que estavam parafusados no chão. Então fiquei um tempo deitado, tempo que não me lembro de sentir nada que não fosse meu coração batendo de um jeito que parecia ser no corpo todo, e o resto era só uma sensação estranha como se tivesse dado apagão na cabeça da gente.

FIM DA PARTE I

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