A questão a ser aqui colocada é quanto ao sucateamento que deixa definhar a educação humanística. Pensemos não em humanística no sentido de educação redentora capaz de libertar os homens e torná-los todos intelectuais salvadores da pátria, mas sim na educação que ajuda o homem a ser humano, fazendo-o pensar não apenas técnica e utilitariamente, mas também pensar na vida em sociedade e nas relações pessoais.
Recentemente um estudante de direito de São Paulo foi agredido na rua por causa da sua opção sexual. O rapaz, militante da causa gay, disse que os agressores o provocaram, e ele respondeu à provocação por não aceitar que sua sexualidade deva ser alvo de xingamentos. Foi aí que os dois jovens partiram para a agressão física. Na sua entrevista, o rapaz questiona por que duas pessoas bem de vida, jovens, seriam capaz de entrar com o carro na contramão para atentar contra a vida de alguém que queria apenas chegar em casa. “Que fúria é essa que faz um cara que deve ter tido todas as oportunidades do mundo a bater em outra de forma tão agressiva? Por que a minha existência provoca uma fúria tão desumana?” Este questionamento perplexo bate num fundo problemático de nossa sociedade, e que poderíamos colocar em outras palavras assim: por que dois estudantes, com casa própria, carro, enfim, jovens que – dentro da terrível lógica da nossa sociedade atual – deveriam ter uma boa educação, tiveram uma atitude tão “primitiva” como essa?
Essa pergunta, acredito eu, serve para provocar a reflexão que quero trazer. Cada vez mais nós parecemos nos impressionar com as atitudes das outras pessoas, ou com o modo de pensar delas. Cada vez mais parece que estamos diante de um tempo em que o individualismo superou o respeito ao próximo. Isso tudo pode nos parecer absurdo, e ficamos a nos perguntar como comportamentos e pensamentos assim podem ainda existir num mundo tão moderno e avançado. O problema é que tendemos a confundir o avanço técnico-científico com o avanço ético e moral, o avanço tecnológico com o avanço humano. Porém, uma coisa não tem necessariamente relação com a outra. Já está mais do que provado de que a evolução do homem na área tecnológica não implica que estejamos também evoluindo como pessoas. O Século XX cansou de nos provar isso: suas duas grandes guerras e todas as suas outras tragédias nos mostraram que quanto mais marchamos para o aprimoramento da técnica, mais regredimos na capacidade de entender o outro e conviver com ele. O caso mais emblemático desse descompasso está no fenômeno que estamos vendo acontecer já há muito tempo e, ainda hoje, temos que, vergonhosamente, encarar: o sucateamento da educação humanística em detrimento do investimento na educação técnico-científica.
Em matéria do O Globo de hoje, ficamos sabendo que as ciências humanas perderam sua chance – já antes bem pequena, diga-se de passagem – de participar do programa Ciência Sem Fronteiras, que concede bolsas para graduação e pós no exterior. Isso é apenas mais um dos casos que ilustra o total desamparo das ciências humanas em relação às outras áreas do ensino. Qualquer pessoa que visitar o Instituto de Letras da UFRGS e depois for ao Instituto de Física (cito a UFRGS como exemplo porque conheço sua realidade) verá o abismo de qualidade na estrutura dos cursos. E isso você verá em outros Institutos ou Faculdades na área das humanas se comparados com qualquer outra área tecnológica – exceto algumas áreas etiquetadas como humanas, mas que acabam tendo investimentos maiores, pois dão mais “resultado” para a sociedade, como o Direito, a Economia entre outros.
E o problema não está apenas nas faculdades, mas também nas escolas, que recebem muito mais incentivo para o desenvolvimento dos cursos técnicos do que para as matérias “tradicionais” do currículo. Um pensamento utilitário terrível que acaba sendo internalizando pelos próprios alunos que se perguntam por que precisam estudar literatura, história, filosofia, sociologia ou geografia, em vez de aprenderem aquilo que sirva para eles quando forem entrar no mercado de trabalho.
A lógica assustadora por trás disso tudo é que a área das humanas não produz conhecimento “prático” e “útil” para a sociedade, pois, cada vez mais, o mercado e o sistema econômico em que vivemos pedem por profissionais com capacidades técnicas, mas não necessariamente capazes de pensar ou de saber viver em sociedade. Precisamos apenas de mais mão de obra que atendam a demanda do mercado, mas que não sejam capazes de saber respeitar o outro ou refletir sobre o mundo que nos rodeia, porque, obviamente, esse tipo de pensamento é inútil e não produz resultados. Cada vez mais, a educação, o ensino que prepara o aluno para ser humano é dispensável, pois não queremos mais pessoas no mundo, apenas novos autômatos.
É claro que a educação que eu chamo de humanística não é a salvadora do mundo. Mas ela é capaz de ajudar as pessoas a pensarem o mundo a sua volta, tornando-as capazes de conviver melhor entre si. Não estou dizendo que ela cura as mazelas, mas ajuda a desenvolver nas pessoas a capacidade de interpretar e compreender melhor a vida em sociedade, pois ela estabelece as bases para que sejamos capazes de enxergar no outro um ser humano como nós. O homem está constantemente interpretando as coisas a sua volta para tentar compreender melhor o mundo e saber como agir nele. Se insistirmos em uma educação voltada apenas para a técnica, com uma lógica meramente utilitária, é esse tipo de visão que vamos criar nos alunos, e é assim que eles passarão a interpretar o mundo: apenas utilitariamente, vendo o outro como algo que tem uma utilidade e não como uma pessoa igual a mim, que merece respeito e merece ser tratado como eu quero ser tratado.
Obviamente precisamos de investimentos na área técnica, precisamos possibilitar a nossos alunos sua entrada no mundo de trabalho, precisamos de mais e mais profissionais nessas áreas “práticas”. Acho que o investimento nas áreas tecnológicas é legítimo e deve continuar. O que não pode acontecer é simplesmente acabar com a educação humana; algo que está sendo feito gradativamente e silenciosamente, sem que ninguém perceba e se tornando cada vez mais natural – o que é ainda mais assustador.
Não podemos simplesmente achar que os cursos das artes e das humanas não merecem investimentos ou que não precisam de infraestrutura porque não produzem conhecimento útil para o mercado; afinal, eles produzem o conhecimento útil para a sociedade, e não vejo como podemos viver sem isso. Não vejo como podemos produzir cada vez mais engenheiros capazes de construir pontes perfeitas e seguras, mas incapazes de criar pontes entre ele e o outro do seu lado; como podemos produzir cada vez mais cirurgiões competentíssimos, mas incapazes de respeitar seus pacientes ou conviver com seus colegas; produzir mais especialistas em Tecnologia da Informação, mas incapazes de se comunicar com as pessoas a sua volta.
Se continuarmos insistindo nesse pensamento utilitarista da educação, continuaremos nos surpreendendo com jovens como aqueles que espancaram alguém só por causa da sua opção sexual. Continuaremos a ver o mundo avançando em tecnologias, mas regredindo em humanidade. Como escreveu Beatriz Sarlo, lembrando Gramsci e o caso da Itália já no início do século passado, a cultura humanística deve ser defendida não como um luxo, mas como uma necessidade.
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