Na última parte, deixamos nosso amigo a ponto de nos contar o terceiro acontecimento naquele outubro de 2007 que o deixou em um estado de reflexão e tristeza. Vamos acompanhar, agora, qual foi esse acontecimento e o que ele provocou.
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Aí que veio o terceiro acontecimento. No dia seguinte recebemos a notícia que Dumas havia falecido bem naquela noite em que cuspíamos bagaceirice no seu velho balcão. Fiquei tremendamente chocado com a notícia. O Dumas? Pô, o Dumas era imortal. Não dava pra imaginar ele não mais aqui conosco. O velho roqueiro era como que um herói mítico imortal para a gente, e ninguém nunca pensou que um dia ele pudesse morrer. O velório seria na quinta, e eu deveria levar minha meia lua porque ia rolar uns sons acústicos em homenagem a ele.
Perambulei à noite escutando Ballad of Curtis Loew, do LS. Aquele era o clima. Eu estava arrasado. Com certeza O Cara tinha sido um dos principais responsáveis pelo bom e velho rock’n’roll clássico estar nas nossas veias. Era um cara alto e forte, pra não dizer gordo. Tinha sido cabeludo, mas agora já estava meio careca. Usava um bigode horseshoe que era seu orgulho e sempre mantinha impecável. Rosto arredondado, o tronco era avantajado. Tinha um sorriso bonachão, e estava sempre falando como se estivesse xingando, mas a gente sabia que era só estilo. Sua frase clássica era: “deixa de viadagem e faz o que eu to dizendo”. Sempre com uma inconfundível rispidez simpática. Ensinou a gurizada a gostar de rock e da história do rock. Ele tinha lá seus dezesseis anos no início da década de setenta. Sempre dizia que nunca iria esquecer.
Adorávamos ouvir música enquanto ele contava as histórias das loucuras de adolescente. Na sua pequena garagem, onde montou a locadora de vídeo-games, aconteciam as discussões mais acaloradas. Aquelas que nunca levavam a nada, mas que, segundo ele, serviam para fixar nossa veia ideológica do rock. Mas elas dificilmente acabavam bem, como a clássica: “qual era o melhor álbum ao vivo de rock”. Um dia, um fulano, que ninguém sabia direito quem era, me veio com um “Strangers in the night”. Saiu de lá quase linchado.
Inconscientemente, enquanto recordava Dumas, acabei parando no terreno baldio. Olhei para o lugar e não tive como não deixar escapar umas lágrimas. Estava tudo acontecendo tão depressa, e a morte do Dumas só me fez pensar mais ainda em minha vida. E imaginei um rio que corre para o mar com o único objetivo de lá chegar: sabe exatamente o que precisa pra isso e faz exatamente o necessário, sem deixar ninguém o impedir. Me vi como uma poça de água estagnada que a chuva criou e deixou ali sem propósito algum a não ser secar lentamente. Se ao menos eu pudesse ter uma outra poça do meu lado, que de vez em quando deixasse escorrer alguma água pra mim.
Pensando nisso tudo, o vazio do terreno baldio se misturou com o vazio da minha juventude. Vazia, sem propósito, sem aquela ebulição revolucionária do final dos sessenta que fazia os jovens pensar. Minhas roupas eram baseadas no passado, minhas músicas eram de bandas que já nem existiam mais (se conseguisse juntar os membros que sobraram de cada uma, talvez desse pra formar outra nova), e por isso as minhas idéias eram as mesmas de caras que ainda lutavam por liberdade sexual e essas questões nada atuais hoje em dia. Eu me via devastado como aquele terreno baldio, mas nem mesmo tive uma adolescência de devastação. Não tive que lutar por nada; não tive que mostrar quem era; não teve nenhum “eles” pra me apedrejarem e não precisei me drogar pra encarar nenhuma dificuldade. Mas estranhamente me sentia balançando em uma forca invisível que eu criara, e que me impedia de me libertar da casa dos pais (coincidentemente meu toque de despertador era Gallows Pole, ou nem tão coincidente, podia ser mesmo meu inconsciente me mandando uma mensagem). Resumindo, não devastei nada pra poder construir em cima.
No velório, estávamos todos lá. Velhos amigos que já nem moravam mais na cidade, outros que continuavam por aí, mas que estavam sumidos. Foi realmente emocionante. Tocamos durante um tempo algumas versões acústicas das músicas preferidas dele. Um cara que ninguém reconheceu, mas que a Diva parecia respeitar muito chegou com uma viola e uma gaita de boca, e todo mundo olhou pra ele com um respeito que não sabíamos bem de onde. Parecia envolto em uma aura de herói de história em quadrinhos. Detonou um B.B.King. Era um dos favoritos do Dumas. Fiquei arrepiado. Foi lindo. Aquilo me fez pensar que Dumas merecia mais, que depois devíamos organizar algo maior. E no meio daquele momento triste e emocionante eu recebi uma luz. Algo como a voz do Dumas me dizendo o que fazer. Fiquei tão nervoso que quase não consegui terminar a música.
Quando acabamos, eu resolvi sair pra arejar e expandir as idéias. Encontrei o tal cara da gaita de boca sentado mais adiante da capela do cemitério, perto da entrada do imenso jardim onde ficavam as pequenas lápides. Parei do lado dele e ascendi meu cigarro. Ele segurava uma daquelas garrafinhas metálicas de bolso. Tomou um gole e me passou. Experimentei. Era uísque e dos bons. Ele disse que era Johnny azul, que não bebia nada abaixo disso, e deu um sorrisinho safado.
Ficamos um tempo em silêncio porque não tive capacidade de continuar o diálogo. Mas pra minha surpresa, o cara olhou pra mim e deu um assovio. “Puxa” disse ele “você cresceu heim Peter”. Fiquei olhando surpreso com o fato de ele me conhecer. Meu apelido era meio óbvio, quer dizer, mais ou menos. Não era só a versão inglesa do meu nome, era mais por causa do Peter Pan, porque eu sempre fui o menor da turma, e todos diziam que eu não queria crescer. Até meu irmão mais novo era maior do que eu. Mas eu não era muito conhecido assim fora da galera do Penelope. Como é que eu não conseguia me lembrar dele?
Foi quando ele sorriu pra mim e perguntou se eu não o estava reconhecendo.
- Sou o cara chato que ficava cuidando pros pirralhos não estragar os vídeo-games do Dumas.
Caralho! É claro. Como tinha esquecido? Tito, o irmão problema do Dumas. Era o caçula que sempre arrumava confusão. Preso por tráfico de drogas, porte de armas e arruaças. Sempre voltava com a história de que ia tomar jeito. Da última vez ganhou o emprego de segurança na locadora de vídeo-games do Dumas. Depois sumiu de novo. A última notícia que tivemos era que tinha se estabilizado, constituído família, arrumado emprego numa gravadora (Dumas sempre dizia que ali estava um desperdício porque o irmão tocava muito) e estava passando bem. Pelo jeito era mesmo verdade, pelo respeito com que foi recebido pela Diva. Ali estava um cara que sempre fora meio mito pra galera. Todos diziam que ele era um baita músico e que vivia uma vida maluca, mas aproveitando muito. Se bem que não tínhamos muita certeza porque quando ele reaparecia, era sempre todo acabado e arrependido de algo que não sabíamos. Mesmo assim, Dumas parecia gostar dele, e sempre dava algum jeito de falar bem do talento do irmão.
- Você não tá mais tão pequeno – ele falou pra sair daquele silêncio constrangedor – ainda te chamam de Peter?
Respondi que sim com a cabeça, mas continuei calado. As idéias fervilhavam no meu cérebro, e ali estava alguém que certamente podia ajudar. Expliquei pra ele da importância do irmão pra uma galera e da importância do Penelope pra cidade e pedi se ele não achava que o irmão merecia uma homenagem maior. Ele pediu o que exatamente, e eu expliquei da idéia de fazer um festival de bandas em nome do Penelope pra homenagear o Dumas.
- Esquece – respondeu baforando – Isso dá muito trabalho.
- Mas se a gente usasse sua influencia e o nome dele – continuei eu, mas nem mal havia terminado a frase, e o Tito já me olhou como quem olha pra alguém que acabou de dizer que Duane Allman não é o maior guitarrista do southern rock.
- Eu não sou tão influente assim, e nem meu irmão é tão conhecido. E o Dumas era um cara na dele. Não ia gostar de uma homenagem dessas. Do jeito dele, construiu uma vida boa porque era feliz no que fazia. E foi assim que se tornou importante pra nós. Ele vai ficar na história das pessoas que o conheceram. Não é uma frase minha nem dele, mas acho que o segredo é: ache uma mulher pra achar o amor, e ser um homem simples. Foi o que o Dumas fez, e, depois, o que eu também fiz. E posso garantir que funciona. É por isso que ele deve ser lembrado, e não precisa mais nada. Se a gente puder ser, cada um, um pouco como ele, já é homenagem que chega.
Ele saiu, e eu fiquei lá, diante de um gramado belíssimo, mas que nada mais era do que um lugar cheio de morto. Assim como minha idéia. Até era bonita, mas não passava de uma idéia morta.
Depois do enterro, os amigos mais íntimos se reuniram no Penélope pra beber o defunto. E nossa! como bebemos! Acho que Dumas ficaria orgulhoso. Não comentei nada da minha idéia com mais ninguém, e a certa altura ela já nem dava mais as caras na minha cabeça. Mas acho que o Tito comentou com a Diva, porque uma hora ela passou por mim e colocou a mão no meu ombro, me olhando com um carinho diferente e afetuoso. Talvez fosse efeito do álcool, mas de todas as pessoas por quem ela passou e colocou a mão no ombro, pra mais nenhuma ela olhou com aquele carinho.
Fui embora já bem alto, e deixei o fusca estacionado lá na frente. Coisa que fazia muito seguido porque era um lugar seguro, e porque ninguém roubaria o herbby. Não por ser fusca, mas a trava dele nem o MacGyver arrombava.
Caia uma garoinha fina e gelada que criava uma aura meio sombria na rua, e tinha aquele vapor rodeando as luzes no poste, que nem filme de terror. Comecei a andar em direção a minha casa, mas sem nem saber como, me vi passando na frente do cemitério. Fiquei parado por ali um tempo, balançando sob minhas pernas. Não sabia direito o que estava fazendo, mas entrei no lugar. Pra minha surpresa, vi mais adiante um vulto que se movia em minha direção. De repente eu estava sóbrio. Bem sóbrio. E me via naquela situação. Tentei sair correndo, mas minhas pernas não se mexiam. Sabe nos pesadelos, quando a gente tenta correr, mas nossas pernas parecem presas? Pois é, era assim que eu estava. O vulto se aproximou, e eu pude ver que estava sujo de terra, mas vestido com o terno impecável com que tinha sido enterrado. Ele parou na minha frente e pediu um cigarro.
- O que você ta fazendo aqui fora, Dumas?
- Quero fumar um pouco. Lá em baixo é proibido – Ele respondeu.
Dei o cigarro, e ele puxou uma garrafa de bom uísque, bem como o irmão. Me ofereceu. Puxa! pensei, acabei de beber o defunto e agora vou beber com o defunto. Sentamos na sua lápide, e começamos a falar da vida (o que me deixou meio desconfortável diante da pessoa com quem eu falava), mas ele parecia não se importar. Então me perguntou por que eu estava tão triste estes últimos dias. Eu falei das minhas angústias, de como me sentia perdido, sem saber o que fazer da vida. Achava que não queria ser professor de história, que na verdade eu queria mesmo era ser músico, fazer sucesso e ter uma vida fácil. Ele riu e me disse que vida fácil não seria. Me mandou parar de pensar e começar a sentir. O que meu coração queria mais nesse momento?
- Rosana, eu imediatamente respondi.
- Então? Não fique pensando em futuros grandiosos e em ter uma vida como a que eu tive, cheia de histórias. A nossa vida é pra ser simples. O que você precisa é de uma mulher. A melhor coisa é arrumar alguém pra amar e querer ficar do lado dela. Depois disso, as coisas vão ser mais claras.
- Quer dizer que se eu começar a namorar a Rosana, eu posso descobrir o que quero da vida?
- Mas claro. Aí vai querer achar algo que você goste de fazer tanto quanto estar junto dela. E também vai querer arrumar algo que te sustente pra você poder casar com ela e ter filhos. E aí pronto. Tá feita a vida.
- Mas eu não sei. Às vezes parece tão sem propósito essa vidinha.
- Deixa de viadagem e faz o que eu to dizendo. Peter! Você nunca prestou atenção de verdade nas letras da tua banda preferida? O que elas sempre dizem? Como eles veem que um homem deve ser para ser feliz?
Fiquei em silêncio, olhando pra ele e esperando a resposta, mas ao mesmo tempo ele também fazia a mesma coisa. Por isso, ficamos quietos por uns segundos. Como ele viu que eu era muito burro e não tinha entendido, ele continuou:
- Seja um homem simples. Não cobice e não sonhe demais. Apenas ame e seja amado. Lembra? Eles sabiam que a vida não é pra ser cheia de coisas. Você tem que casar e formar uma família, o resto tá em volta disso. Você vai ver. É muito mais natural do que parece a gente querer ter só uma vida ao lado de quem ama, e ter grana pra sustentar e poder ajudar as pessoas que gostamos. É isso e o resto se endireita – ele ficou um tempo olhando a boca da garrafa, pensativo – Pena não se pensar mais assim – tomou mais um gole e finalizou – E quanto àquela história de homenagem pra mim, primeiro conquiste a garota, depois pensa direito.
Enquanto ele dizia essas últimas palavras, uma névoa mais densa começou a baixar, e quando eu vi, não via mais nada. Dumas não estava mais ali, e eu tinha escorregado e estava deitando na grama, escorado na lápide. Levantei e tentei voltar pra casa. Mas estava tão atordoado e zonzo que nem mesmo lembro como consegui chegar e deitar na cama. No dia seguinte, o velho toque do despertador me tirou da cama, mas me deixou a puta dor de cabeça. Fui trabalhar acompanhado dela, e de uma tremenda dúvida sobre minha lucidez.
Na escola, eu estava meio retraído. Não sabia bem qual seria minha reação ao ver Rosana. Passei o resto da semana assim, sem conseguir pensar muito. Aquela cena com o defunto do Dumas tinha me deixado meio cabulado. Não sabia bem se tinha sido sonho ou não, mas se foi, tinha sido bem real. O fato era que, sonho ou não, tinha suas verdades naquelas palavras. E eu não podia deixar de achar que estava perdendo tempo pensando nessas coisas todas e não agindo. Tinha de aproveitar minha proximidade com Rosana, e o fato de ela estar solteira.
Até que certo dia, passado o abalo da morte do Dumas...
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Bom, acho que uma morte e a conversa com um espírito já é coisa demais pra essa parte. Na próxima iremos descobrir como essa conversa bizarra ajudou ou não a Pedro (Peter) e o que ele, finalmente, irá fazer da sua vida. Até lá.
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