segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Um Conto de Natal em Duas Partes (Parte II)

Foi a Solange quem me ergueu, toda preocupada, e eu ainda estava meio grogue e só sabia dizer que estava tudo bem, e que foi só um susto. Só que só um susto porra nenhuma! Foi um baita susto, porque aquele choque e a queda podiam ter me matado, mas mesmo assim eu não queria parecer fraco na frente dela e já queria levantar e subir de novo pra ver o que tinha de errado. Então a Solange me segurou e me mandou ficar sentado e disse que ia buscar água, e eu fiquei ali, tentando entender o que tinha acontecido, e sentia o corpo tremer todinho e um troço estranho na cachola. Eu nem mesmo conseguia entender o que aconteceu porque na hora estava olhando pra Solange, e não sabia se tinha um maldito fio desencapado ou o que, mas sabia que eu estava sem luva, e isso era errado, e eu nunca tinha errado assim em tanto anos.

Foi só pensar nisso que eu fiquei preocupado com essa das luvas e tentei pensar porque tinha esquecido delas. Então eu olhei o papai-noel ali parado, e não sei se era por causa do susto e da cabeça meio tonta e aquela meia luz que deixava umas sombras, mas o boneco me olhava com aquele sorriso psicopata, e eu fiquei com medo porque parecia que ele estava me provocando e dizendo que a vingança estava feita. Então eu me lembrei das imagens de quando era pequeno, das figuras do Deus de barba e roupão branco e fiquei até meio sem saber o que sentir: era meio que uma mistura de medo e de raiva, não sei, algo assim... estranho.

E eu tentei levantar e sair dali, mas ainda estava meio tonto; então sorte que a Solange chegou e me segurou, porque me impediu de cair e arrancar o pingüim que me apoiava. Então ela me deu a água, disse que já tinha ligado pra Samu e avisado o Silva pra vir ver o negócio. E eu ainda tentei dizer que eu era o responsável e eu tinha que resolver, mas a mulher mostrou porque era segurança e me levou dali na força.

Nós fomos pro HPS, e o médico fez uns exames e me mandou ficar ali a noite toda. Então a Solange veio me ver e pedir se tinha que avisar alguém, mas minha única família era minha irmã, e pra ela não precisava avisar.

Então eu não queria ficar ali de jeito nenhum porque estava mesmo preocupado com o que tinha acontecido e quando fico assim, o único lugar que me deixa tranqüilo é em casa, e eu ficava repetindo que aquilo nunca tinha acontecido e tal.
- Eu sou um bom eletricista – eu dizia – não to nessa empresa por acaso. Agora não sei o que aconteceu pra eu ter errado assim.

Ela tratou de me acalmar e disse que ia pedir pro Silva me dar uns dias de folga, mas eu disse que não queria, porque não gostava de ficar sem fazer nada, então a Solange não queria ficar discutindo e disse que tinha que ir embora, mas ia passar lá em casa amanhã depois do trabalho pra ver como eu estava. Eu nem consegui dormir direito de noite, e não sei se era a cama de hospital ou se era aquela coisa estranha dentro de mim que não me deixava sossegado, mas eu tive até uns sonhos estranhos.

No outro dia, o médico me disse que eu podia ir embora porque não tinha nada de errado comigo, e eu fui pra casa e passei o dia sem saber direito o que fazer. A Solange foi lá de noite e continuou insistindo na folga e disse que não adiantava eu dizer não porque o Silva já tinha decidido.

Então, depois de um tempo, ela olhou bem a minha casinha e perguntou com quem eu ia passar o natal, e eu não sabia o que responder, porque desde que meu pai sumiu com outra, e minha mãe morreu, eu ia pra casa da minha irmã nessas festas, mas a família do meu cunhado era tão mala, que eu já não aguentava mais. Então eu demorei pra responder, e ela acabou me convidando pra ir na casa dela, e foi assim que eu pareci acordar de verdade daquilo tudo, olhei pra ela e me dei conta que a mulher que eu gostava estava ali na minha casa, dando a maior atenção pra mim, mais ainda, ela tinha acabado de me convidar pra passar o natal com ela. Então eu perguntei:
- No duro?
- Sim. A gente faz uma janta bem farta até. Daí fica lá no jardim ouvindo um som, conversando, uns até se animam a dançar. Só que antes disso a gente sempre vai na missa. Se quiser pode chegar depois.
- Tá. Vou sim – eu disse apressado, com medo de ela desistir.
- Combinado.

Ela me sorriu e saiu, e eu fiquei ali meio pateta, olhando a porta, sem saber direito o que pensar. Então eu voltei a ficar estranho, e me larguei na poltrona e fiquei olhando o teto, pensando naquele sentimento doido que bateu depois da queda, o jeito como o papai-noel me olhou só podia ser coisa da minha cabeça, mas esse sentimento que veio junto... não sei. Era tipo medo, mas um medo diferente, medonho, não sei, um medo sem explicação, medo do escuro misturado com o medo da queda.
Então acho que senti medo da morte pela primeira vez, e junto veio uma raiva, não sei do que, raiva de tudo e todos, como se aquilo tudo só pudesse ser culpa de alguma outra coisa, mas não minha.

Eu fui dormir e ainda estava meio pendurado nesse sentimento, e acabei sonhando com queda, sabe aquele sonho que a gente tem de que tá caindo num escuro sem fim? Pois é, eu fiquei sonhando isso o tempo todo, e esse maldito sonho continuou por mais umas noites, e ele só mudava de lugar, às vezes eu caía da escada, às vezes de um morro, às vezes do andar de cima do shopping.

Passei os dois dias até a véspera do natal sem sabe o que fazer, porque o Silva não arredou pé e me deu a licença. Então que eu vi que minha vida sem o trabalho não tinha muita outra coisa, porque eu tinha minhas diversões, mas já fazia tempo que eu gostava era do sossego da minha casa, mas muito tempo de sossego me fazia mal. É aquela história: eu nasci pra ser quero-quero, porque construir o ninho e não fazer mais nada não era pra mim, e eu precisava continuar trabalhando, ou isso, ou eu precisava arrumar alguém com quem dividir esse tempo livre. Então eu lembrei de novo da Solange, e isso tudo se misturou com o sentimento estranho que eu estava tendo, e eu resolvi comprar um presente pra ela.

Então fazia tempo que eu não saia comprar presente de natal, e o centro naqueles dias estava o inferno, era gente saindo pelo ladrão, eu mal conseguia andar na rua, e entrar em loja nem pensar. Olhar vitrine era burrice, que só se via era cabeças, costas e bundas dos outros, tudo amontoado que nem urubu em carniça. E eu não acreditei foi quando me vi dentro de um shopping pra comprar um presente, mas não tinha jeito. Fui direto numa loja de chocolates. Eu não sabia o que dar, mas achei que chocolate toda mulher gosta, mas então me dei conta do calor, se fosse dar bombons, era melhor dar dentro de uma caixa com gelo. Então eu saí e fui olhar roupas, mas não sabia o tamanho e o gosto da Solange, porque quase não a vejo sem o uniforme. Então eu passei na loja de bijuteria, mas isso é presente pra homem que conhece bem a mulher, e eu tinha que ir mais calmo porque estava recém começando a conquista. Então eu zanzei tanto no meio da confusão, que acabei comprando uma garrafa de champanhe, e nem me dei conta da merda: era presentinho bem safado aquele, porque se não é pra aquelas pessoas que gostam e que sabem do assunto, é só pra deixar guardado na cristaleira como se fosse um troféu, até que num ano novo, de porre, ela abre aquele negócio porque não tem mais nada pra beber; ainda mais quando é essas espumantes vagabundas como a que eu comprei. Mas pelo menos foi de coração.

Ainda que gastei um dia nessa função, também fiquei meio irritado, porque enquanto eu tentava voltar pra casa fiquei com vontade de mandar todo mundo à merda com aquela mania de compras, porque mesmo de moto eu estava trancado no transito, querendo matar um, e pensando que merda eu fui fazer. E então eu ouvi meio longe, por cima das buzinas, um som bonito, umas vozes como que de anjos estavam cantando em algum lugar, e elas pareciam vir da direção da catedral, e eu fiquei com vontade de ir até lá porque parecia um negócio que acalmava: o que eu estava precisando.

Consegui sair dali fazendo umas manobras ilegais e peguei uma rua que levava pra catedral, e vi que era alguma programação natalina: um coro muito bonito cantava uma dessas músicas que a gente gosta mesmo sem saber o que diz, porque a letra é em alemão. Então tinha bastante gente olhando, e eu fiquei mais afastado, ouvindo e me acalmando, e era mesmo muito bonito, e eu achei que aquilo sim era espírito natalino.

Então não sei quantas horas fiquei por ali porque perdi a noção de tempo, e na verdade, tinha perdido a noção de tempo e espaço porque estava tão embalado pela melodia que pensei ter flutuado por um instante. Não sei, mas sabe aquela coisa bem de leve, como se a nossa alma tivesse dado um tempo, ido ali e já voltado? Eu acho que eram as cores das luzes na fachada bonita da catedral e as vozes e a figura bonita que o coro fazia e os movimentos do regente, e tudo isso meio que se juntou com aqueles dias estranhos, e eu acho que tudo ajudou pra que eu tivesse a sensação de flutuar mesmo. Não sou pessoa das mais cultas, mas também sei apreciar as coisas bonitas, e aquilo era bonito, ainda mais quando a gente está assim como eu estava, meio tristonho, meio perdido, meio medroso, meio sem saber direito o que a vida ta fazendo com a gente.

No meio daquilo tudo, mesmo a cretinice do natal pareceu sumir, e eu pensei que ali, naquelas vozes e melodias podia haver um Deus, não sei, mas talvez eu tenha achado uma forma de aceitar Aquela existência, se visse que Ele estava mesmo fazendo alguma coisa por mim, como aquele coral estava. Então eu só fui acordado com a explosão dos fogos que acabavam a programação, e eu estava tão envolvido na atmosfera de paz que nem a barulheira me irritou, e achei até bonito o colorido dos fogos sobre a praça.

Eu voltei pra casa e fiquei pensando em muitas coisas, coisas profundas que a gente não se acostuma a pensar, porque parece ser coisa dos que nascem pra isso, os padres e os filósofos e os professores. Então eu pensei na vida, na morte, no tempo, e achei que talvez o medo que eu sentia fosse de alguém que se esqueceu de aproveitar um pouco mais as pessoas, mesmo elas sendo estranhas, porque ainda tinha as legais. Então, talvez eu tivesse envelhecido um pouco naquele natal, e lembrei de muita coisa que aprendia com minhas tias carolas, mas o que era mais forte era a vontade de acreditar em algo a mais. Então, eu, sozinho ali na minha casa, ainda ouvindo o eco do coral, percebi que tinha desistido de alguma coisa... talvez eu tivesse era mesmo desistido de acreditar.

De noite sonhei de novo uma coisa muito estranha, mas não tinha mais queda. Eu andava num descampado e via um morro onde em cima tinha uma escadaria, e eu subia a escadaria, mas ela era cumprida, muito cumprida, e de repente eu chegava no final e não tinha mais pra onde ir, e tinha só o céu na minha frente, e pra trás a escadaria descia. Então eu sentia muito medo, porque estava bem na beirada e quando olhava pra trás, a escadaria era tão reta e estreita que eu tinha medo de voltar, e eu ficava ali parado, sem saber pra onde ir e morrendo de medo. Então eu ouvia as vozes do coral e, lá longe, mais adiante, podia ver o coral cantando na frente de uma igrejinha com uma torre pequena. E fiquei com vontade de ir lá, mas continuava com medo, e então eu olhei pros meus pés e vi asas. Sim, asas nos meus pés, e eu começava a perder o medo, por causa da vontade de ir até o coral. Então eu só pisei e fui e andei no céu mesmo, com as asas nos pés batendo rápidas que nem asa de colibri.

Então eu acordei com uma vontade louca de voar, mas sem saber se tinha chegado na igreja ou não. Nossa! Que sonho maluco! Eu me sentia muito estranho porque tudo aquilo se misturou, e acabou que me deu vontade de ir à missa com a Solange e a família dela. Eles eram gente simpática, querida e te recebiam muito bem.

E acabou que foi muito bom ir à igreja porque foi uma missa simpática e boa, e eu pensei que ia ser aquela coisa de descer a lenha, mas não, porque o padre era um sujeito legal e falou de amor, de esperança, de nunca desistir dos outros porque Jesus não desiste da gente, e eu achei aquilo bem a ver com o momento, e o jeito como ele falava parecia mostrar algo além, alguma coisa que não era nada do que eu tinha imaginado até hoje.

Então, no final da missa, as pessoas se cumprimentavam e desejavam feliz natal, e o clima era bem agradável, e eu estava me sentido bem e andei onde tinha muitas imagens de santos e de Jesus, mas nada daquilo dizia alguma coisa. Então acabei topando com uma bíblia esquecida em um dos bancos, e tinha nela uma folha seca de árvore marcando uma página, e aquilo me pareceu tão interessante, que fiquei meio abobado olhando, e, de repente, eu achei que ouvi como um sopro, uma voz dizendo que eu não desistisse. Então olhei pros lados e vi a imagem de um Jesus bem diferente, de sorriso simpático e olhos espertos, e eu simpatizei com ele e fiquei encarando aquela figura tão diferente de todas as outras que eu conhecia, e ele parecia alguém de verdade, alguém confiável. Então, era como se não fosse a imagem dele, mas o que ele tinha feito por mim, pra todos, e achei aquela história de ouvir Jesus tão maluca que até pareceu mais fácil de acreditar novamente.

Quando fomos pra casa da Solange, ela ficou muito feliz com o presente e disse que não precisava e que já estava bom eu estar ali, e eu fiquei achando que estava ganhando a mulher e não conseguia pensar em outra coisa, mas então ela saiu pra guardar o presente, e eu fiquei pensando no olhar dela e na sinceridade dele e achei que aquilo era muito mais do que só interesse de mulher por homem, interesse de coisas do mundo, mas era um sentimento de quem de verdade se importa com os outros. Então pareceu que eu vi nisso aquele Jesus de novo, e parecia que Ele me sussurrava mais uma vez, e o olhar dela parecia com o Dele. Então, sem nem acreditar direito, eu acho que estava acreditando de novo.

É claro que eu não voltei a ser católico de verdade depois disso tudo, mas pelo menos voltei a acreditar em algo como Deus. Na verdade queria era acreditar em Jesus, pelo menos o Jesus daquela noite, mas como pra se acreditar no Filho, precisa se acreditar no Pai, eu acho que voltei a acreditar em Deus porque eu achei que no fim das contas não tinha porque não acreditar num camarada que, mesmo com toda sacanagem que fazem com Ele no dia do seu aniversário, ainda me pede pra acreditar porque Ele acredita.

Às vezes, quando ainda conto essa história pra Solange, ela me diz que se não conhecesse o marido que tem, diria que ele era um santo. Então eu olho pra ela e digo que em santo eu não acredito, porque salafrário que faz e acontece, daí tem um piripaque qualquer, diz que é uma visão, que se converteu e sai fazendo milagre... Isso pra mim é uma baita sacanagem de quem não respeita a fé dos outros. E pra mim Deus é Deus, o Filho Dele é o Filho Dele, e o resto é tudo homem que só sabe fazer merda.

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