quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Histórias do Fim do Mundo III

O Fim do Mundo

Então, o mundo não acabou, pensou Raul, sentado na sua poltrona, segurando uma lata de cerveja meio quente e olhando as notícias melancólicas no jornal da noite:

Dezembro de dois mil e doze. Milhares de pessoas se suicidaram e o mundo ficou bem mais vazio. Um grupo de milionários se reuniu num castelo em uma ilha e gastou suas fortunas em uma festa nunca antes vista. Beberam champanhe com doses homeopáticas de uma droga letal. Antes que pudessem ver que o tal último dia era só mais um dia, todos estavam mortos.

Raul pensou que era melhor assim. Se tivessem continuado vivos, se matariam de desgosto quando vissem suas fortunas gastas, e o mundo ainda inteiro. O fato é que, enquanto muitos haviam feito rituais bizarros ou se mataram por causa de uma profecia, Raul estava sentado na sua sala morrendo de calor e pateticamente olhando a televisão de sempre. Tudo isso pra provar que nada mudara. Mais um ano estava acabando, mais uma profecia furando, mais um fim de mundo passando e o mundo continuava na mesma, apenas mais vazio. Assim como a vida de Ra...

Bom mas na verdade, na segunda-feira, Raul descobriu que algo extraordinário havia acontecido e alguma coisa havia, no fim das contas, mudado na sua vida. Ela não estava mais rica, mas mais cheia de dinheiro. Ele estava mais rico.

O mundo era para acabar num sábado. Nesse dia, um temporal fortíssimo atingiu boa parte do planeta, e continuou chovendo no domingo, quando finalmente faltou luz em pelo menos todo o estado. Na segunda, por volta de umas cinco da tarde, ainda chovia, mas a luz começou a voltar.

A cidade havia ficado deserta, mas Raul achou que a volta da luz significaria a volta da rotina. Por isso, se levantou, praticou sua rotina caseira e foi até o caixa eletrônico. Precisava pegar o pouco de dinheiro que ainda restava pra poder começar a procurar emprego no dia seguinte. Seu chefe burro havia fechado a empresa e vendido tudo que tinha – mais um imbecil fazendo idiotices por causa de uma profecia.

Porém, qual não foi sua surpresa quando viu seu saldo surpreendentemente acima do normal! Estava, na verdade, simplesmente um milhão e meio acima do normal!
Desnorteado e sem saber o que fazer, Raul precisou ir até o bar mais próximo, tomar uma cerveja e depois um café – só não fumou porque estava firme na decisão de parar. Voltou pra casa e apenas conseguiu ficar sentado. Tentou pensar claramente. Havia acontecido um pequeno colapso no setor de energia, isso era certo. Não fora como o que disseram que iria acontecer, mas ainda assim, haviam ficado sem luz por quase dois dias. Talvez isso tenha afetado os sistemas dos bancos e alguma coisa tenha dado errado. Ficara sabendo que muitos funcionários de grandes bancos haviam surtado com o fim do mundo também, e tinham propiciado loucuras nas contas, dando prejuízos aos donos dos bancos. Ele não sabia se no seu banco isso havia acontecido, apenas achou que no fim das contas, quando as coisas começassem a voltar ao normal, no dia seguinte – porque todo dia seguinte traz as coisas de volta ao normal na experiência de Raul –, tudo seria solucionado e o dinheiro não estaria mais lá.

Achou melhor não cometer nenhuma loucura. Primeiro passou pela sua cabeça a possibilidade de retirar tudo, abrir a conta em outro banco, fechar aquela e, quando exigissem devolução do dinheiro, ele não devolveria. “O erro foi de vocês. Não tenho nada que ver com isso”, diria pra eles. Essa possibilidade passou por sua cabeça, mas se lembrou de como era incomodo lidar com os bancos.

Trabalhara durante dez anos no setor financeiro da empresa e sabia do que eles eram capazes. Sabia como seria uma dor de cabeça, um inferno, o fim do mundo, conseguir manter aquele dinheiro. Achou que era melhor esperar.

Apenas se sentou novamente no seu sofá, pegou mais uma cerveja e voltou a olhar a televisão pra ver o que estava acontecendo. Caos. Era isso que estava acontecendo. Pessoas que haviam cometido loucuras antes do tal fim do mundo agora estavam sem saber o que fazer. Milhares haviam se matado. O mundo estava certamente menos populoso. Suicídios coletivos e individuais, assassinatos: muitos decidiram resolver seus desafetos da forma mais drástica possível já que tudo iria acabar, outros quiseram dar vazão a seus instintos e impulsos. Resultado? Assassinos, patricidas, parricidas, fratricidas e todos os tipos de cidas que Raul podia imaginar.

Porém, uma prática, não muito difundida, mas que aconteceu nesse fim de mundo, e que não foi noticiada, foi a que o atingiu. Ele soube quando foi no banco no dia seguinte, e a quantia de um milhão e meio ainda estava em sua conta. Ele resolveu falar com a gerente. Era o fim do mundo pra alguns, mas pra ele o mundo continuava o mesmo e ele ainda temia se indispor com bancos. Foi então que soube que não havia nada de errado. Aquela quantia havia sido depositada na sua conta, por um senhor, que preferiu se manter anônimo, e que viera ao banco na sexta-feira, uns minutos antes da agência fechar. A gerente também explicou que mais de um caso daqueles havia acontecido na véspera – era provavelmente pessoas abaladas com o apocalipse.

- Mas se estavam abalados com o fim do mundo, por que doar dinheiro pra outra pessoa? O fim do mundo não ia chegar pra mim também?

Ela deu de ombros e não perdeu tempo em oferecer milhares de vantagens pra Raul e sua nova conta polpuda. Após algumas horas ouvindo as melhores vantagens de ser um cliente super-ouro-platina-diamante, ou coisa parecida, ele apenas assinou um contrato e foi pra casa. Nem mesmo seu cérebro, tão habituada a saber o que realmente prestava nessas papagaiadas todas, tão rápido em perceber onde estavam as armações, tão ligeiro em dizer não, nem mesmo ele serviu pra salvá-lo de ser um cliente com todas as vantagens que o banco pode oferecer pra sugar o seu dinheiro. Ele estava amortecido por causa de toda aquela situação. Nem mesmo dormiu, tentando imaginar quem teria sido o imbecil que doara aquela quantia e por que doara pra outro imbecil como ele. Não conhecia ninguém com tanto dinheiro que pudesse pensar nele pra dar toda aquela grana. Na verdade, não conseguia pensar em ninguém com todo aquele dinheiro. E por que ele? Por que escolher alguém como ele? Alguém tão... não sabia ao certo como se definir (e certamente nós também não saberemos como defini-lo), mas ele não se via como alguém merecedor de receber essa quantia, seja lá qual fosse a razão pra doação.

O sono demorou a vir, enquanto ele se perdia nas indagações, mas, em algum momento daquela madrugada quente e chuvosa, ele finalmente pegou no sono, e foi o sonho que teve naquela noite que o fez acordar cheio de decisões. A primeira coisa a fazer, ligou pra gerente e deu a descrição de um homem:

- Baixinho, cabelos grisalhos nas têmporas, terno impecável de risca de giz e um jeito irritadiço de falar e se mexer.
- Bem, ele não tinha um jeito irritadiço, senhor, muito pelo contrário, estava bem calmo. Diria quase deprimido. Mas ele era baixo, cabelos grisalhos nas têmporas e usava um terno impecável de risca de giz.
- Muito obrigado. Por favor, eu quero fechar a minha conta.

Certamente era o senhor Andrade; a única pessoa que usaria um terno impecável de risca de giz até mesmo na véspera do fim do mundo. Seu ex-chefe vendera tudo e, pelo jeito, o escolhera pra ser seu donatário. Por que não o filho mais velho? Por que não a mulher? Por que não o irmão mais novo? Porque eram todos imbecis como ele e também acreditavam no fim do mundo, pensou. Por que, então, havia sido ele o escolhido entre seus funcionários pra receber a bolada? Isso ele não sabia. E isso ainda iria continuar a incomodá-lo. Mas agora que sabia de onde viera o dinheiro e o que provavelmente aconteceria depois, sabia exatamente como agir: como sempre fazia.

Pegou o dinheiro, abriu uma nova conta em um banco que lhe era muito mais generoso, e começou a investir. Investir em que? Ora, não estava claro? Imóveis. Com a onde de suicídios e o monte de gente que vendera ou perdera tudo, mas não se matara, a matemática era fácil: imóveis sobrando e uma onda de compradores desesperados.

Comprou apartamentos e casas em diferentes áreas da cidade, dos mais caros aos mais baratos, além de alguns prédios comerciais. Os preços estavam ótimos. Conseguira começar as transações na hora certa, antes que a procura começasse a ser tanta que os preços inflacionariam.

Mas teria que esperar um pouco pra começar a alta dos preços. Primeiro, as pessoas que perderam tudo teriam que procurar os bancos pra pedir empréstimos, depois os bancos teriam que falar com o governo, que precisaria baixar alguma medida de emergência. Logo começariam as primeiras levas de compradores. Raul sabia que precisava de uma saída segura pra se caso algo saísse errado e, do que sobrou ele investiu em ações de empresas de donos que não haviam sido burros suficientes e mantiveram seus negócios. Na área de energia e informática ele conseguiu investimentos ótimos.

Gastou praticamente tudo que ganhara nesses investimentos e voltou a viver com o pouco que se acostumara. Nem quis começar a experimentar a vida de rico pra não se acostumar com um padrão muito alto. Esperaria ter uma renda suficiente pra não voltar a ser um assalariado. Depois, iria fazer tudo que sempre quis.

Não demorou até que a leva de desesperados enchesse os bancos de pedidos, e os bancos reclamassem com o governo que precisou tomar medidas de ajuda. Grande, pequeno e micro crédito começaram a inundar a praça, e as pessoas iniciaram a reconstrução de suas vidas. Logo Raul estava colhendo o que plantou. Seus imóveis mais baratos foram logo alugados. Uma de suas casas mais caras foi comprada. Esse dinheiro ele usou metade pra deixar na poupança e outra pra investir em mais alguma coisa lucrativa no mercado de ações: telefonia. As tais tempestades solares não haviam estragado nada e o setor de comunicação estava voltando a subir. Mais algum tempo e os prédios comerciais também foram alugados e, então, os apartamentos mais caros.

Se dois mil e doze havia sido um ano como qualquer outro pra Raul, sem ou qualquer perspectiva e sem nenhuma emoção, dois mil e treze entra com tudo, e ele, na páscoa, já era um dos homens mais ricos da cidade, talvez do estado. Estava na hora de fazer tudo que ele sempre quis fazer. Estava na hora de finalmente deixar de ser o contador medíocre que era pra ser um milionário e viajar pelo mundo, ter casa com piscina e carros importados. Beber bebida de primeira e comer nos melhores restaurantes. Estava na hora de achar uma mulher que pudesse encher de joias.

Bem quando estava planejando tudo isso, bateu a sua porta a pessoa que ele, desde o começo, estava esperando que viesse, mas que, no meio de toda aquela emoção econômica, havia esquecido completamente. Seu ex-chefe estava parado na sua frente, com os cabelos mais grisalhos, ainda mais baixo, porém com o bom e velho terno impecável de risca de giz e o jeito nervoso de falar e se mexer.

Raul não havia deixado de pensar por que ele fora escolhido pra receber o dinheiro, mas de certo modo isso ficara em segundo plano na sua mente ocupada com cálculos, negócios, compras e vendas, assinaturas de contratos e negociações de preços. Voltava a incomodá-lo de vez em quando, sempre quando conseguia relaxar. Voltava a ocupar alguns espaços de sua cabeça e dardejava por ali como um pássaro fraco que quer sair da gaiola, mas não tem forças. Nessas horas, se lembrava do seu chefe e sabia que era inevitável ele voltar. Mas acabava se esquecendo novamente, e, quando o momento finalmente chegou, ele percebeu que não estava preparado pra aquilo.

Convidou seu Andrade pra entrar e sentar. Os dois ficaram em uma troca de olhares constrangida por alguns segundos, enquanto Raul percebia como seu ex-chefe mantinha a velha pose. Ele era um homem grande, apesar de baixo. Não era gordo, mas era grande. Uma grandeza mais psicológica que física. Tinha postura, um olhar dominador, e um ar de autoridade, de quem tá sempre ocupado, o que era ressaltado por seus gestos e a fala sempre nervosos. Raul tentou se enxergar nele, mas não conseguiu. Era mais alto, magro e mais novo, mas nem de longe tinha aquela presença. Mesmo sentado naquele sofá velho, seu Andrade, de pernas cruzadas e as mãos sobre elas, parecia o dono, e Raul o funcionário. Mas dessa vez era o contrario. Ele era o dono, ele tinha o dinheiro – ele Raul, obviamente. Ou não?

- Seu Andrade – perguntou no velho tom baixo de voz – por que o senhor me escolheu pra dar aquele dinheiro?

O chefe olhou com olhos de falcão e deu um leve sorriso, como se já antecipasse tudo que viria.

- Justamente porque eu sabia que você cuidaria bem dele, exatamente como você fez.
- Como assim?
- Ora, ora, Raul – disse seu Andrade, se inclinando pra frente, na direção de seu empregado – Você sempre foi meu melhor funcionário. Eu sabia que podia contar com poucos naquela empresa pra manter o dinheiro a salvo. E sabia que você era o único que podia fazer muito mais. E veja! – ele fez um gesto largo, como se abarcasse o que sobrou do mundo – você fez! Você triplicou, quadruplicou a quantia que deixei com você.
- Deixou com?
- Claro! Você não achou que eu deixei pravocê, não é?
- Achei que tinha feito isso por causa do fim do mundo.
- E fiz. Claro que fiz. Você não percebeu a jogada de mestre?
- Não.
- Eu me retirei do mercado, dando a entender que temia o fim do mundo como todos os meus grandes concorrentes. Eu percebi que eles estavam falando sério e achei que se eu não entrasse na onda e permanecesse no mercado pra me aproveitar da situação, alguns deles iriam perceber a jogada e fazer o mesmo. Então, eu bolei toda aquela história pra poder deixar o dinheiro com alguém que eu sabia ter o mesmo espírito que eu, que eu sabia que não iria gastar tudo, mas que iria ser esperto o suficiente pra investir o dinheiro e criar essa fortuna.
- Mas eu pensei que o senhor... quer dizer... a sua esposa, filho, a sua família toda.
- Ora, mas isso fazia parte da encenação, não é mesmo? Inclusive não te avisar de nada. Afinal, tinha que ser perfeito! Eles todos sabiam disso. E estão todos bem e de volta. Quer dizer, a não ser o meu cunhado que... Ele era muito burro e... Mas isso não tem importância. O que importa é que você cumpriu seu papel e cumpriu acima das expectativas meu rapaz!

E seu Andrade estava quase segurando o rosto de Raul com as duas mãos nesse momento. Raul estava se sentido especial. Afinal de contas, alguém achava que ele valia algo, e o considerava capaz. E esse alguém era ninguém mais que seu Andrade!

- E o senhor quer o que agora?
- Ora, que voltemos a trabalhar juntos.
- Como sócios?

Nesse momento seu Andrade pareceu antever alguma coisa da qual não esperava, e seu largo sorriso vacilou um pouco, mas não o suficiente pra que alguém como Raul percebesse. Rápido como um falcão dando seu rasante, seu Andrade pulou para o sofá em sua frente, se sentando ao lado de Raul e colocando um de seus braços sobre os ombros deste. Raul sentiu até mesmo um certo estremecimento percorrer sua espinha: era como se ele fosse o novo preferido de seu Andrade, que nunca havia mais do que apertado a sua mão.

- Você sabe muito bem que sermos sócios incorre em termos de dirigir a empresa juntos, não é mesmo? E eu pensei que você não iria querer ter todo esse estresse em sua vida. Ah, porque é um estresse e tanto. Além disso, olhe bem pra nós, Raul. Você acha que coseguiria ser como eu e ser um chefe? Acha que conseguiria controlar aqueles empregados que são como aves de rapinas querendo rasgar nosso bucho a todo momento? Ah não! Com certeza não...

E Raul queria interromper seu chefe ali mesmo e lhe dizer que não precisava fazer isso, que ele seria o milionário viajando pelo mundo, enquanto seu Andrade seria o sócio que cuidaria de tudo. Afinal, ele havia construído aquela fortuna, ele sozinho havia feito todos os investimentos certos e negócios rendáveis, mesmo que fosse com o dinheiro inicial de seu Andrade. Mas ele não podia interromper o homem, pois ele falava como um imperador:

– Assim, como fui eu quem deu o dinheiro inicial que possibilitou você fazer tudo que fez, pensei que poderíamos voltar a ser como antigamente. Exceto, claro, que você agora deixaria de ser um mero contador pra ser o chefe do setor financeiro. Poderia mesmo empregar o Alfredo de volta só pra poder mandar nele, hãm? Hãm? O que me diz? Você gostaria de mandar naquele velhote sem vergonha, não é mesmo?

Ah gostaria sim, pensou Raul. Então ele seria o rei do pedaço. Seria o chefe do financeiro. O homem da grana. Todos o respeitariam e o olhariam com inveja. Ele reinaria na empresa, como nunca antes. Veja que maravilha. Veja que salto ele daria. Afinal de contas, seu Andrade tinha razão: ele não tinha vocação pra ser chefe. Não saberia o que fazer. Meteria os pés pelas mãos. Seria melhor assim. Voltaria a fazer o que sabia, ganharia um pouco mais, teria sua própria sala e mandaria no velho Alfredo (se ele não tivesse se matado também).

- Temos que redigir os documentos – ele disse.
- Ora não se preocupe. Eu já providenciei isso com meus advogados.

Nossa! Seu Andrade era mesmo muito eficiente. Ele nunca seria tão rápido assim no pensamento. O homem era uma fera e ele estava recém aprendendo. E o que era melhor, aquela homem o havia escolhido, e ele seria, a partir de agora, seu preferido. No fim das contas, dois mil e treze estava realmente começando muito bem pra Raul.

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