Ele era um garotinho chamado Hermes que adorava imaginar. Junto com seus amigos recriava, na simples rua, os cenários elaborados para uma perseguição de polícia e ladrão; uma batalha medieval; um duelo entre pistoleiros do oeste; um campo de futebol para os craques da seleção nacional.
Dar vida aos seus brinquedos dentro de casa também era sua especialidade; criando histórias como as assistidas na televisão.
Certo dia, o pequeno Hermes achou um objeto quadrado, grosso, com uma capa preta e arabescos dourados. Abriu-o e viu apenas inúmeras figuras minúsculas, pretas e sem graça. Pediu ao pai o que era aquilo, ao que recebeu a resposta enigmática: um livro. O que viria a ser um livro? ele quis saber, e seu pai explicou que o livro contava histórias. O menino duvidou, pois histórias eram aquelas que ele assistia na televisão: divertidas e cheias de imagens. O pai sorriu e no dia seguinte trouxe para o filho um livro carregado de figuras coloridas. Uma nova experiência se abriu a Hermes. Tal qual um aventureiro explorando um novo mundo, ele devastava as imagens em busca de sentidos e histórias intrigantes. No início, os pais liam as palavras que acompanhavam os desenhos, mas ele não desgrudava dos livros mesmo quando não havia ninguém para lê-los para si. Inventava novas histórias, criava novas situações para aqueles personagens ali desenhados, enfim, imaginava e criava.
Foi quando, finalmente, disseram que ele iria aprender a ler e escrever na escola. Ficou excitado com a possibilidade de ele mesmo ler seus livros e, depois, ele mesmo criar suas próprias histórias. Foi imensa sua decepção, no entanto, quando descobriu que ler e escrever era tão chato quanto fazer contas. Tinha que decorar aquelas coisas chatas; tinha regras a seguir. Ninguém lhe avisou que existiam regras para escrever; ninguém lhe disse que tudo aquilo que ele imaginava livre e solto na sua cabeça, sem regra nenhuma, tinha de ser domesticado para poder ser posto no papel. Naquele momento, morreu, no pequeno Hermes, a vontade de escrever suas histórias. Preferia olhar televisão, imaginar as coisas e recriá-las no seu quarto, vestindo-se como seus personagens preferidos e montando cenários; afinal, para isso, não havia regras.
Anos passaram em que Hermes foi cada vez mais se decepcionando com esse tal de português. Por que tinha de ser tão difícil organizar aquilo que já estava pronto na sua cabeça? Ele tropeçava nas regras que não decorava e era obrigado a escrever coisas que não gostava. Não entendia como a professora podia dizer que estava errada uma frase escrita se ela fazia todo o sentido e qualquer um o entendia quando ele a falava.
Apesar de toda aquela dogmática experiência, a escolástica não conseguiu construir uma muralha entre ele e as histórias. Nem mesmo um imperador chinês poderia acabar com os livros na vida de Hermes, pois essa paixão era anterior e mais forte do que a cadeia das regras gramaticais. Dom Quixote e As Viagens de Gulliver nas versões infantis, A série Vagalume, Codinome Duda, Sherlock Holmes, Agatha Christie... Aos poucos Hermes percebia que lendo escrevia melhor e que só precisava decorar as malditas regras para as provas.
No ensino médio, até mesmo sua convivência com a gramática mudou; uma professora nova incentivou a escrita e tentou mostrar para ele e seus colegas como era mais fácil entender regras que encontravam no próprio texto. Hermes ainda não conseguia se relacionar melhor com elas, pois estava há muito tempo inculcado daquela decoreba safada que não o deixava pensar direito, mas gostava das aulas de redação onde podia exercer a escrita, fosse dando opiniões sobre assuntos recorrentes – como era bom ver suas idéias sendo postas no papel e, depois, sendo lidas e debatidas –, fosse narrando histórias que sua imaginação não cansava de criar.
Quando já pensava no que fazer da vida pós-escola, sua professora de português sugeriu que ele estudasse letras. A opinião dela era muito importante e, mesmo que nunca houvesse cogitado isso, pensou com carinho. Mas o fato era que ele e o português “correto” (na figura das regras gramaticais) ainda eram apenas amigos distantes que não se davam muito; sua relação era cheia de “não me toques”, “disse que disse” e eles realmente não se entendiam – ou era só Hermes quem não entendia o outro? Sabia que a sugestão fora dada porque ele escrevia bem – pelo menos era a opinião da professora e de alguns colegas – e não achava que só isso era motivo para agüentar anos estudando gramática. Sua decisão foi, logicamente, o jornalismo.
Seis anos se passaram em um curso onde escrever era meio chato para ele porque, se não estudava leis do português, era obrigado a aprender as leis do texto jornalístico, que em nada deviam em chatice. Se algo era certo na vida de Hermes, é que não gostava de leis em atividades que deveriam dar prazer. Por isso, trocou o texto pela imagem. Sempre gostara de cinema e televisão; eram outras duas formas de se contar histórias – e ele cada vez mais achava que isso era o que gostava de fazer. Pensava no cinema como a linguagem do presente que ainda seria, por muito tempo, a linguagem do futuro. Gostava de aprender as regras dele porque pareciam fazer mais sentido em sua cabeça – afinal, não as aprendera da mesma forma que as regras da língua.
No fim dos seis anos, porém, apesar de toda aquela emoção da nova paixão, Hermes ainda não se desgrudara dos livros. Muito pelo contrário, lia cada vez mais. Começou, por conta própria e sem nem saber direito, a se interessar pela forma como cada escritor moldava a língua para contar sua história. Além do cinema, a literatura voltou a ser um foco de muito interesse. E, por causa dela, ele voltou a iniciar um relacionamento com a gramática.
Voltara como se fosse uma velha amiga que há muito tempo não via; uma amiga com quem sempre brigava, nunca se acertava, mas que estava sempre presente (mais ou menos como uma mãe). E foi como se aquele tempo em que passaram separados um do outro, junto com o amadurecimento natural do rapaz, melhorasse a relação (exatamente como com uma mãe), e houve paz entre os dois.
A paz só veio porque Hermes percebeu a importância daquelas regras para poder fazer o que tanto gostava, mas mais do que isso: percebera que não eram regras tão rígidas assim; que podia lidar com elas de forma mais amigável; podia dialogar com elas; usá-las para seu bem, desde que soubesse o que estava fazendo. E ele soube, a partir do momento em que finalmente começou o curso de letras, que estaria dando um novo passo nessa relação. Uma relação que, entre tapas e beijos, vai ser a mais duradoura da sua vida.
Esse foi um texto escrito para a cadeira de Gramática e Estilo. Foi pedido que escrevêssemos sobre nossa relação com a linguagem. Como todo texto que tem tema pré-determinado, eu tive dificuldade em escrevê-lo, mas fiquei satisfeito que tenha saído um texto curto, pois normalmente escrevo muito. É também um texto simples e sem muitas pretensões. Vale ressaltar que ele é apenas meio autobiográfico, pois realmente não tenho lembranças da época em que me alfabetizei, por isso tive que inventar. Mesmo assim, acho que o sentimento contido é real.
Muito bem! Gostei do texto! Gostei do blog!
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