A barba desgrenhada, os cabelos sujos, a roupa puída, os olhos perdidos e um chapéu de confederado com um furo no lado esquerdo derreado na cabeça. Assim aquele homem se encontrava sentado, solitário, apenas com um violão a tira colo, e sua voz rouca soando pelo saguão da rodoviária. O violão, por sinal, tinha um remendo de fita marrom no braço e cordas improvisadas, mas o som não era de todo ruim, pois estava bem afinado. Era de corpo pequeno, mas o som era bonito. A voz do homem também parecia pequena, mas era bonita. Apesar da rouquidão, era pequena. Apesar do inglês meio tupiniquim, era bonita. E sim. Ele cantava em inglês. Cantava Johnny Cash e Bob Dylan.
De repente, começou a tocar Blowin’ in the Wind. Mas cantava um pouco diferente. Cantava a primeira estrofe com partes das outras estrofes, e depois a segunda parte era inventada por ele mesmo:
How many roads must a man walk down,
Before you call him a man?
Yes and how many times must a man look up,
Before he can see the sky?
Yes and how many times can a man turn his head,
Pretend that he just doesn't see?
The answer, my friend, is blowin' in the wind
The answer is blowin' in the wind
How many houses must a man lives in,
Before he calls it a home?
Yes and how many women must a man lives together,
Before he calls her a lover?
The answer, my friend, is hidin’ in the rubbish
The answer is hidin’ in the rubbish
Fiquei ouvindo ele algum tempo, surpreso com a invencionice. Ele me olhou e perguntou se eu não daria nada. Coloquei uma nota de cinco no pote e ele agradeceu com um toque no chapéu. Aproveitei a pausa para perguntar como ele sabia inglês. Disse que de onde veio todas as crianças aprendiam inglês. E ele sabia um pouco mais por causa da música, que sempre amara. Perguntei de onde ele conhecia Johnny Cash e Bob Dylan. Disse que seu pai os apresentara quando ainda era criança e já começara a aprender violão.
Ele era carroceiro e levava tudo para reciclagem, mas ficava com algumas coisas. Um dia achou o violão e os papéis no lixo. Se perguntou por que alguém teria jogado aquilo fora: “música é a única coisa de bom nessa vida”. Eu disse que talvez fosse alguém desapontado consigo mesmo e com sua música. Ele me olhou estranho. Eu me senti estranho. Ele riu e disse que essa deveria ser uma pessoa mesmo muito triste. Daí continuou sua história. Disse que quando viu o violão lembrou quando tocava com o pai e os amigos no interior. Ficou com saudade e o concertou. Pegou as folhas e tentou lembrar como era tocar. Fazia realmente muito tempo. Eu disse que estava boa, dentro do ritmo.
Eu perguntei como ele tinha vindo parar na capital. Contou que, como todo músico do interior de dezenove, vinte anos, veio com o sonho do estrelato. As pessoas da cidade dele diziam que ele era bom. Veio com pouco dinheiro e muita convicção: “mas isso só mesmo não basta”. Tocou em alguns bares, tentou mostrar composição própria pra alguns radialistas, mas nada. Não conseguia muito, a não ser tocar em bares e ruas. Ainda tinha dinheiro para voltar, mas que nisso nem pensava porque voltar daquele jeito era vergonha. E não queria acabar como peão de estância, depois que conheceu a cidade.
Ficou. Tentou mais um pouco, mas o dinheiro acabou. O pai não tinha mais pra mandar. Acabou indo viver na rua: primeiro cantando. Mas com o som eletrônico, o trabalho nos bares era mais disputado e ele não tinha dinheiro pra equipamento melhor. Precisaria de um parceiro com teclado, no mínimo, mas não conhecia muita gente. Se obrigou a vender tudo, até mesmo o violão, e foi ser catador de lixo. O pouco que ganhava era para viver, mas tentava sempre guardar um pouco e juntar a passagem de volta. Depois de tudo que tinha passado, voltou a preferir ser peão de estância. Depois de um tempo, achou o violão e as folhas. Estava tão cansado que resolveu tentar ganhar dinheiro de outra forma. E lá estava ele, na rodoviária, tentando juntar o resto da passagem.
Pedi quanto ainda faltava. Eu pagaria o resto pelo violão e as folhas. Ele olhou com esperteza para mim e depois para o violão. Disse que esperava voltar com ele porque tinha se apegado. Como eu não respondi nada, ele me olhou de volta e pediu porque eu queria aquele lixo velho. Porque fui eu que joguei fora, eu respondi. Ele me olhou nos olhos e eu mantive o olhar. Não sei bem o que tinha naquele olhar. Gostaria de ter descoberto. Me fez pensar muito. Mas realmente não sei.
Depois disso ele aceitou a oferta. Eu voltei para casa muito contemplativo e cheio de esperanças, junto com o violão e as folhas velhas.
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