quarta-feira, 2 de maio de 2012

Isso não é uma resenha


“Invisibe”, de Paul Auster
Livro que trata do problema da verdade sem cair na mesmice.

Um dos reveses de se estudar literatura é que, dependendo do período ao qual você se especializa, acaba ficando um tanto bitolado e afastado da literatura de outras épocas. No meu caso, que estudo literatura Vitoriana há alguns anos, tenho dificuldade em arrumar tempo para ler e explorar livros mais atuais. Até que achei estar na hora de criar vergonha na cara. Primeiro tentei ler algo da literatura brasileira contemporânea (digo contemporâneo o que foi escritos de 2000 pra cá), e confesso que fiquei bastante decepcionado. Parecia-me que a literatura de nossos tempos não tinha aquela capacidade de me envolver, de me fazer sentir emoções variadas ou fazer pensar, desde questões simples a questões complicadas. Não que fossem livros ruins, só não eram nada mais que medianos. Até que nas férias eu comecei a ler o livro de um autor que fazia muito tempo queria ler, Paul Auster.

Auster é um escritor estadunidense (natural de Newark, New Jersey) conhecido pela sua "New York Trilogy", que usa de uma não convencional estrutura de história de detetive para falar sobre existencialismo, busca de identidade e sobre a própria literatura. No entanto, por ter ganhado de presente, comecei a ler seu penúltimo romance (que eu achava ser o último), “Invisible” (2009), e posso dizer que finalmente me deparei com uma história envolvente, que mexeu comigo a ponto de me deixar muitas vezes incomodado (algo raro). Posso mesmo afirmar, passado alguns dias após o término da leitura, que esse é um dos poucos livros na minha história de leitura que me fez ter sentimentos tão variados a respeito de seus dois protagonistas.

A narrativa, à primeira vista, é formada pelas memórias de Paul Walker, um jovem estudante de literatura da Universidade de Columbia, que traduz poemas escritos em provençal e sonha em ser poeta; ele parece ser o centro da narrativa. Walker é aparentemente tímido, recluso e não se considera tão bonito quanto os outros o consideram. Ele parece ser um personagem típico, fazendo-me inclusive pensar que estaria lendo mais um desses livros que autores adoram escrever sobre a conturbada vida amorosa de jovens escritores tímidos mas talentosos (e só depois de ler sobre o autor fui descobrir que esse tipo de personagem é meio parecido com ele e bastante usado em seus livros). Essa impressão se intensificou quando entrou em cena Margot e Rudolf, um casal de franceses (ele na verdade é suíço de nascença) com o qual Walker se envolve. Um envolvimento um tanto estranho, já que, mesmo tendo conhecido o jovem poeta a pouquíssimo tempo, Rudolf Born (um personagem bastante duvidoso) oferece dinheiro a Walker para que este coordene uma revista de cultura que ele financiará. Nesse ponto já achava que estaria lendo um daqueles thrillers envolvendo sexo, crimes e perseguições. Porém, quando Margot viaja de volta à Paris, algo acontece na relação entre os dois homens, um ato que pode ser lido como pura violência ou apenas autodefesa, e, de repente, a história não é mais sobre um jovem recluso que quer ser poeta ou sobre um perigoso triangulo amoroso, mas sobre o embate entre o certo e o errado, sobre a verdade e como encontrá-la nas páginas de uma ficção que pretende ser real. A partir de então, somos levados, através de uma prosa fluente e agradável, por um tour pelos emaranhados problemas da moralidade e da verdade. E não é um tour fácil, pois nos vemos pulando de relato em relato, com mudanças de narradores e de percepções.

A história não é mais sobre Walker, mas sobre o embate entre dois homens de moral duvidosa, caracteres fortes e ideais opostos. Em boa parte da narrativa vemos tudo pelo prisma de Walker, que tenta tornar legítima sua obsessão em derrotar Rudolf. Se nessa parte poderíamos simpatizar com o jovem estudante e seu idealismo, ficamos, pelo contrário, cada vez mais intrigados com sua personalidade, seu relativismo moral e o absurdo de seus atos enquanto não consegue deixar de julgar Born pelo que teria feito. Já o suíço permanece por boa parte do livro na penumbra do mistério, sendo apenas uma sombra duvidosa, da qual não temos certeza de nada.

Vamos passando pelas quatro partes do livro, com suas mudanças de estilo, até que na última parte somos surpreendidos por revelações que abalam as poucas certezas que tínhamos até aquele momento. Surge, então, uma nova e inesperada narradora que tira o foco de Walker e nos dá um relato curto no qual tenta, finalmente, retirar Rudolf das sombras. Porém, isso não serve revelar algo certo sobre ele, mas para nos deixar ainda mais em dúvida sobre seu caráter e, consequentemente, sobre Walker. Tudo fica, então, mais nebuloso ainda, a ponto de querermos voltar para o início do livro e ver se não deixamos escapar nada (esse é um daqueles livros que certamente merece uma segunda leitura). O final, totalmente enigmático e inconclusivo, faz-nos pensar sobre o título: o que é invisível afinal? Poderia ser a verdade, a realidade, ou a própria história contada. A realidade aqui é sempre derrubada pela possibilidade da ficção, pois somos sempre lembrados que esse é um livro de memórias, mas que está sendo manipulado por mais de um autor. O que estamos lendo então? Um relato fiel das memórias de uma pessoa? Uma obra de ficção que manipula os fatos a ponto de torná-los sempre mais duvidosos? Em determinado momento da narrativa um personagem propõe a outro que suas memórias sejam transformadas em ficção para que se possa manipulá-las e para não criar problemas a outras pessoas envolvidas, e pensamos se não é exatamente isso que estamos lendo – e se esse personagem fosse Walker teríamos talvez uma resposta à pergunta, mas não é ele quem faz a proposta e continuamos no escuro. Continuamos lendo algo que parece invisível, seja a verdade, a realidade ou a própria narrativa.

Fixando-se como mais um livro que trata do problema da verdade ou verdades, realidade ou realidades, sobre incertezas do mundo líquido, onde os discursos constroem os sentidos e nos ditam aquilo que achamos ser verdade e real, “Invisible” consegue não ser só mais um livro falando a respeito desses temas tão caros ao nosso tempo. E isso se deve muito a sua capacidade de nos envolver, de nos fazer se relacionar com seus personagens a ponto de, em certos momentos, querermos dar um soco em Walker e mandá-lo deixar de ser chato, ou mesmo ficarmos sempre em dúvida sobre quem é Rudolf Born – tanto que nunca conseguimos estabelecê-lo como a espécie de vilão que ele seria. Muito bem escrito, num estilo que flui facilmente, ou poderíamos dizer em estilos que fluem facilmente, já que temos diferentes estilos ao longo das quatro partes, o livro é altamente para quem quer uma leitura que trata de problemas altamente filosóficos, sem ser chata e cansativa, ou sem ser mais do mesmo.

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