“je est um autre”
(Rimbaud)
Era uma vez um navio chamado Syuzhet que foi deixado num porto de um rio de uma cidade. E junto com o navio Syuzhet ficou um marinheiro esquecido para cuidar do navio até que viessem buscá-lo. Mas nunca vieram, e o navio Syuzhet foi deixado lá para ir envelhecendo e afundando aos poucos.
Quando o navio Syuzhet envelheceu e afundou o primeiro pouco, o marinheiro esquecido decidiu que não podia ficar sem fazer nada. Ele começou a arrumar e limpar o navio e suas roupas. Arrumava e limpava, arrumava e limpava. Eram poucas roupas estendidas pelo convés, mas muitas caixas e máquinas para arrumar.
Quando o navio Syuzhet envelheceu e afundou o segundo pouco, o marinheiro esquecido viu que não tinha mais o que comer. Ele pediu ajuda para o funcionário de tronco largo e olhar parvo que de vez em quando vinha observá-lo. Houve dificuldade de linguagem, mas o marinheiro esquecido conseguiu gesticular “comida”, e por sorte o parvo tinha bom coração.
Quando o navio Syuzhet envelheceu e afundou o terceiro pouco, o marinheiro esquecido sentiu-se sozinho. Ele e o parvo já nem se viam direito. Ele encontrou um gato que tinha por ali e fez amizade. Os dois juntos viviam caçando os muitos ratos que habitavam o navio. Caçavam de noite e de dia ficavam estirados sob o sol no convés, dormitando. Ficavam cada vez mais amigos, conforme os anos passavam e o marinheiro esquecido já era ágil como o gato, correndo nas quatro patas pelos corredores, e mesmo aprendeu o “miau” para se comunicar com o amigo. Mas, um certo dia, o gato já velho morreu, e o marinheiro esquecido ficou só novamente. Tentou erguer-se em duas pernas e acabou raspando o braço em uma porta enferrujada. A dor o fez gritar e se ver humano novamente. Mas não conseguia mais achar palavras pra pensar. Forçou, forçou e finalmente lembrou algo: “Spasskaia”. Mas o que era?
Quando o navio Syuzhat envelheceu e afundou o quarto pouco, o marinheiro esquecido viu como ele estava sujo e bagunçado. Ele olhou para o guindaste que havia lá pro outro lado e achou bonita a força dos seus movimentos. Inspirou-se no seu novo amigo e, com força, voltou a arrumar e limpar o navio. Arrumava e limpava junto com o guindaste, quando o serviço do amigo acabava, o dele também. E, às vezes, à noite ia sentar aos pés do amigo pra tentar lhe contar histórias, mas não sabia mais como. Não sabia se contava “balinas” ou “stavinas”. Mas, um dia, acordou e o seu amigo havia sido trocado por outro guindaste mais novo. Ele ficou triste e tentou pensar que também estava velho, mas que ninguém vinha lhe trocar. Tentou, mas não conseguiu. O marinheiro esquecido apenas caminhou pelo convés e corredores vazios. Soava um profundo som catacúmbico como os passos de um morto que anda por sua eterna morada.
Quando o navio Syuzhet envelheceu e afundou seu quinto pouco, o marinheiro esquecido se viu no espelho e se assustou. Era um ser monstruoso, misto de homem, animal e máquina. Ele decidiu que tinha de reencontrar o velho parvo de bom coração, pois ele fora o único a ficar. Ele tentou se arrumar, mas não conseguiu. Foi esperar o amigo no lugar onde ele sempre deixava as sacolas. Quando o parvo chegou e viu o marinheiro esquecido, assustou-se. O marinheiro tentou andar em sua direção e falar algo, mas o outro se assustou mais ainda e fugiu.
O marinheiro esquecido ficou parado, meio curvado, o vento a balançar seus trapos. E dos seus olhos, que há anos lacrimejava, saiu uma única e última lágrima que continha uma miríade de sentimentos resumidos num só: a dor do vazio. Ele voltou no seu caminho a passos lentos e incertos, sem certeza do que fazia, pois andar já não significava o mesmo de antes: ir de um lugar a outro, mas significava morrer a cada passo, ir em direção única e sem volta.
O marinheiro esquecido se aproximou do velho... não lembrava mais. Tocou-lhe como alguém que toca um velho companheiro esquecido que finalmente é recordado, e tirou a pequena concha canhota grudada ao casco para guardar no bolso.
Quando o navio Syuzhet envelheceu e afundou o sexto pouco, o marinheiro esquecido deitou na cama do seu dormitório e tentou lembrar algo, mas não conseguiu. Nem uma palavra veio. Ele ficou ali deitado a esperar.
Quando o navio Syuzhet envelheceu e afundou o sétimo pouco, o marinheiro esquecido já havia morrido, e afundou junto com o navio.
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