Quando Bingley chegou à estalagem encontrou a moça sentada sozinha a uma das mesas do saguão. Ao avistá-lo, ela levantou-se e o cumprimentou com todo o respeito e simpatia. Ela era realmente bonita. Apesar de achar a atitude de Darcy errada, compartilhava do desejo que o amigo tinha por aquela pequena beldade com o frescor dos quinze anos. Ele corou um pouco ao pensar nisso enquanto a olhava, pois era como se ela pudesse ler aquilo que passava em sua mente. Fez um leve cumprimento com a cabeça e subiu rapidamente para encontrar o amigo no seu quarto.
Darcy estava sentado à janela e terminava de escrever uma carta. Quando o amigo entrou, levantou-se, sorriu para ele e o abraçou com muita força. Darcy parecia cansado, e não havia como não notar um ar de preocupação naquela pequena ruga na linha das sobrancelhas. Mas também não havia como não ver um ar juvenil e viril de volta em todo seu corpo. Ele estava feliz e sentia-se bem.
- Então, o que conseguiste? – ele perguntou com uma calma que tentava disfarçar a ansiedade.
- Ela esta seguindo corretamente sua pista. Logo saberá exatamente o que aconteceu.
- Irá escrever para Wickham, então?
- Pude ler por sobre o ombro de Jane. Foi a última coisa que escreveu.
- Certamente escreverá para a irmã.
- Ela contará a verdade?
- A não ser que o marido a intercepte, sim.
- O que você fará?
- Já está na hora de Lizzy saber tudo. Mas não quero que seja por outros.
- Então, irá voltar?
- Não. Ainda não. Temo pelo pior se nos virmos novamente. Estou acabando de escrever uma carta para ela onde revelo a verdade. Preciso que chegue nas mão dela antes que receba algo do norte.
- Isso tudo é loucura, Darcy. Como você pode?
- Eu sei. Às vezes ainda me pego fazendo essa pergunta. Mas, você a viu lá em baixo. Não é encantadora? Aquela leveza; o frescor juvenil; é tudo o que eu preciso agora. Ela me desperta instintos que pensava estarem mortos em mim.
- Mas você amava Lizzy.
- Não como você ama Jane, Bingley. Alguma coisa entre Lizzy e eu mudou muito. Nós dois mudamos, mas acho que isso me afetou mais do que a ela.
Darcy sentou-se novamente à escrivaninha e olhou pela janela, como se olhasse para os anos passados e tentasse pescar dessa visão algo que desse a ele uma resposta mais correta; uma resposta que pudesse aliviar um pouco do seu sentimento de culpa. Mas tudo que via parecia realmente uma confusa e indistinta nuvem de insetos.
- Não sei bem como se deu. Certamente foi gradual, como aquelas mudanças silenciosas que só percebemos quando já nos atingiram por completo. Quando me apaixonei por ela, fora justamente sua personalidade, sua indiferença para com as regras de nosso mundo que me arrebatou. Ela me fazia ver coisas sobre mim mesmo que eu não poderia ver sem outra pessoa. Porém, à medida que fomos passando tempos juntos, percebi como a vida em casal seria difícil sem a vida em sociedade. E logo essa estava atravancada pela posição que minha esposa ocupava.
- Mas não era isso que você gostava nela?
- Exatamente. Eu sei que é difícil, nem mesmo eu consigo entender o que eu estava sentindo. Se soubesses como eu lutei comigo para conseguir domar essa controvérsia. Quanto mais eu via sua dificuldade em ser aceita pelas outras pessoas dos círculos que freqüentávamos, e quanto mais eu percebia sua indiferença e mesmo divertimento com isso, mais eu gostava dela. Mas, ao mesmo tempo, algo em mim dizia que isso era ruim; que não poderia ser assim.
- Bom, mas ela conseguiu conquistar essas pessoas, assim como fez com você. Lembro-me bem de uma visita nossa em que ela estava à vontade e era muito bem quista pelas damas e cavalheiros que estavam no baile.
- Oh sim. Com certeza. Mas, como eu disse, era tudo muito controverso e difícil de entender aqui dentro. Minha primeira reação ao ver sua conquista foi de alegria e orgulho. Achei que as coisas iriam mudar em mim. E assim foi no início. Eu comecei a querer mais e mais ficar ao lado dela. Contudo, como sempre, nada é só uma coisa ou outra. Logo eu comecei a perder todo aquele respeito e admiração inicial que tinha por minha esposa. Se quando ela não conseguia seu espaço eu me preocupava, mas a admirava, quando ela finalmente o conquistou, eu parei de preocupar-me, mas também deixei de admirá-la.
Bingley estava muito confuso com aquilo, caro leitor, como você também deve estar. Por isso, ele sentou-se na outra cadeira vazia do pequeno quarto da estalagem e olhou bem para seu amigo em busca de algum sinal de confusão mental que explicasse aquelas palavras estranhas. Mas não havia nada disso. Darcy era todo autoconhecimento. A dificuldade estava provavelmente nas palavras. Era difícil expor com elas aquilo que ele entendia também sobre si.
- Vocês brigavam muito, então? – perguntou, na esperança de que a resposta o ajudasse a ver mais claramente a situação.
- Brigas comuns de qualquer casal. Somo pessoas de personalidades complicadas, meu amigo. Não seria fácil assentar as duas em uma mesma casa, mesmo uma tão grande quanto Pemberley. Mas eram discussões que acabavam nos reaproximando. Nessas ocasiões, por mais que eu estivesse com a razão, sentia um certo mal estar. Como se fosse uma indigestão moral por aquela briga. Essa obrigação para com minha esposa fazia-me ser sempre o primeiro a buscar a reconciliação. Não era exatamente o amor que me obrigava, mas muito mais um dever.
- Mesmo assim, não foram as brigas?
- Oh não. Claro que não. Além disso, tínhamos nossos amados filhos. Com certeza essa será a parte mais difícil em tudo. Não conseguirei ficar longe deles. Os pequenos foram, certamente, a salvação. Talvez sem eles eu já tivesse feito antes o que fiz só agora.
- Ora, Darcy. Pelo modo como falas, parece-me que seu amor por Lizzy deixou de existir muito cedo.
Darcy sorriu a esse pequeno comentário, carregado de uma indignação que não pôde ser disfarçada.
- Meu caro amigo. Você é muito mais sentimental. Não é uma questão de amor. Creio que nunca foi. Posso até dizer que ainda devo amar Lizzy, e que justamente por isso a estou deixando. Mas a vida em dois não é só feita de amor. Até mesmo os mais enamorados dos casais sofrem desgastes. Você sabe bem disso. Acontece que depois do desgaste vem a parte difícil; quando o amor tem que conseguir dividir espaço com outras coisas. Só assim para que ele consiga sobreviver por tanto tempo. Essa idéia de que existe um sentimento tão grande que apaga as outras dificuldades, sejam elas quais forem, é por de mais sonhadora. O amor precisa de outros elementos que o ajudem a se manter por anos e anos. Acho que são justamente eles que se foram em mim. E digo sentimentos por não conseguir pensar em outra palavra. São coisas do corpo e da mente que a gente não consegue controlar. Coisas da natureza.
- Você pode tentar nomear e explicar o quanto quiser Darcy, mas eu vou continuar não conseguindo entender.
- Tens razão. Se eu continuar falando, serão apenas palavras de um homem faltoso tentando se justificar. Só quero que fique claro que eu nunca deixei de amar minha esposa. Talvez apenas... acho que só deixei de admirá-la. Se é que posso falar assim.
Depois dessa conversa, Darcy terminou sua carta e entregou a Bingley, que deveria providenciar para que ela chegasse a Lizzy o mais rápido possível. Dali ele seguiria para uma propriedade que comprara e que ficava perto de Pemberley. Seria desta casa que ele cuidaria do divórcio com Lizzy. O pai de Eleonora, que era de uma família simples, aceitara deixá-la ir antes do casamento oficializado, mediante o pagamento do generoso dote que Darcy pagara. Ele fazia questão de já ter a companhia de sua pequena, pois ela era quem mantinha o ambiente a sua volta mais tranqüilo. Sua presença emanava um cheiro de jardim ainda molhado pelo orvalho da manhã, e Darcy se sentia como que deitado nos braços de uma ninfa das florestas quando junto dela.
Em Pemberley, Lizzy começava a desistir de buscar informações sobre o pai dos seus filhos. Eles ainda eram os únicos que se preocupavam com seu sumiço, pois ela já se resignara à verdade. Ainda assim, escrevia uma carta a Wickham para buscar informações sobre Darcy. Essa idéia apareceu em sua cabeça, há algum tempo, após ter conversado com a mulher de um dos rendeiros das terras de Darcy, que já havia sido abandonada por dois maridos anteriores. Ela disse a Lizzy, em uma visita para oferecer alguns produtos da fazenda do casal à Senhora de Pemberley, que todo homem chega a uma idade em que vai atrás de mulher nova. Lizzy achou que um conhecido de Darcy que poderia ajudar nessa empreitada era Wickham, apesar da inimizade dos dois. E até mesmo por isso ela achava que o marido de Lydia seria a pessoa certa, pois para reconquistar certa proximidade com Darcy não pouparia esforços em ajudá-lo.
Passados alguns dias, em que ainda não tivera coragem de enviar a carta para Wickham, Lizzy já se perguntava o quanto valia a pena continuar a busca pelo homem desprezível no qual seu marido havia se tornado. Ela já recebia todo o apoio que precisava tanto da família quanto dos amigos. Jane escrevera dizendo que viria vê-la o mais rápido possível, e que se desculpava por não ter vindo antes. Até mesmo a outra Jane, a Rochester, estaria chegando por esses dias. Algumas amigas de Londres mandaram cartas também, mas essas ela sabia que estavam apenas mostrando interesse.
Enquanto isso, ela ia levando sua vida junto a seus filhos, que eram, nesse momento, quem ela mais amava no mundo. Começava a se acostumar com o fato de ser consultada a respeitos dos negócios da propriedade, e já estava mesmo gostando de tocar a vida como a Senhora de Pemberley.
- Ora. – disse ela para si mesma, enquanto olhava-se no espelho, antes de deitar-se – A quem estou enganando? É claro que não vou me acostumar a essa vida. Mas preciso pensar assim. Preciso ter certeza que não terei nenhuma recaída caso veja Darcy outra vez.
Assim, ela foi passando mais alguns dias, em que relutava em enviar a carta. Não tinha certeza se era só o fato de não querer mais saber de Darcy que a segurava, ou se tinha algum outro motivo escondido no seu íntimo, e que ela não queria encarar.
Foi nesse estado de espírito que ela recebeu, finalmente, uma carta de Darcy. Demorou a abri-la, pois queria pensar bem antes. Queria imaginar todas as situações possíveis e quais seriam suas reações em cada uma delas. Sabia que não o aceitaria de volta, mas não sabia como reagiria caso ele simplesmente disse que não iria voltar. Chegou mesmo a balançar diante dessa idéia, e por frações de segundos passou por sua cabeça a imagem dela queimando a carta sem abri-la. Porém, não podia ser assim. Ela precisava de uma resposta, e precisava encarar os fatos, fossem eles quais fossem.
Decidida e cheia daquela velha força de espírito que tanto a notabilizou no passado, ela finalmente rompeu o lacre, retirou as folhas de dentro do envelope e começou a ler as letras tão bem desenhadas por Darcy:
Querida Lizzy,
Espero que não me entenda errado quando lhe disser que não a amo mais. Gostaria primeiro de explicar-lhe toda essa situação...
FIM
sexta-feira, 17 de junho de 2011
quinta-feira, 9 de junho de 2011
Os Cigarros de Mr. Darcy - Parte III
Querida Jane,
Realmente me sinto muito feliz em saber que você e Bingley voltaram a se acertar, afinal, não havia cabimento vocês dois estarem se desentendendo por tão pouca coisa. Sei como a vida de casado, depois que vivemos muito tempo juntos, começa a ficar mais e mais difícil, e acho até que esse seja um dos motivos pelo sumiço de meu marido; mesmo assim, aquele amor de vocês não podia ser tão facilmente abalado por esses meros problemas de um relacionamento. É uma pena que Bingley não tenha tido nenhuma notícia de seu melhor amigo, pois obviamente depositava nele minhas mais fortes esperanças de encontrar alguma pista de Darcy. Porém, não posso deixar de lembrá-la que os homens são muito unidos e sempre estarão um do lado do outro nas suas tramóias, seja lá qual o resultado disso. Portanto, queria lhe pedir que prestasse atenção no comportamento de seu estimado companheiro, tentando perceber algum deslize que demonstre a verdade sobre seu conhecimento a respeito de Darcy; não posso deixar de suspeitar que ele saiba algo, mas que relute em contar-lhe justamente por saber que você viria logo revelar-me a verdade. Espero, contudo, que nada disso possa abalar a relação entre vocês dois novamente, pois sabes muito bem que ele não acredita estar traindo sua confiança ao encobrir o amigo.
Não, amada irmã, eu não saberia precisar o motivo para tão repentino sumiço. Devo crer que ele já pensava isso há tempo, caso contrário não teria tido a capacidade de preparar seus negócios e economias, bem como fez, para estar bem provido em sua viagem. Porém, se isso é verdade, não consigo ver nenhum sinal demonstrado por ele, durante todo esse tempo, de algum tipo de contrariedade. Tivemos momentos turbulentos, é óbvio, afinal, somos dois tipos de personalidades fortes, mas nada que depois não se resolvesse com uma boa conversa e algumas carícias. Aliás, ele era sempre o primeiro a se esforçar nesse sentido, e era sempre quem mais tentava reparar as rachaduras daquelas pequenas querelas.
Tens razão ao dizer que passamos por maus bocados quando, no início, eu devia ser apresentada ao seu mundo e acompanhá-lo em todos aqueles eventos. Eu era uma estranha naquele meio, e as palavras espalhadas por Lady Catherine realmente antecederam minha chegada. Porém, apesar dos olhares e torções de narizes, dos esforços para me intimidarem, eu acho que me saí bem. Sofri um bocado, pois percebia como era importante para ele que eu me realizasse naquela sociedade, assim como ele. Toda aquela despreocupação quanto a tais questões, quando estamos apaixonados e só vemos a vida ao lado da pessoa amada, acaba assim que a vida real nos atinge novamente. Ainda assim, creio que nada disso tenha abalado nossa relação, pois ele realmente se divertia muito com todas as fofocas e faltas de consideração, bem como com minha postura diante de tudo. Estávamos em sintonia tão grande que nada disso podia ser, ainda, algum motivo de desentendimento.
Conforme os anos foram passando, eu aprendi a movimentar-me muito bem naquele meio, e, isso sim, pareceu-me deixá-lo estranho. Era como se ele gostasse da época em que eu era uma deslocada. Conforme fomos ficando mais queridos e requisitados, e mesmo as mais altivas damas aprenderam a me respeitar, e eu aprendi a lidar com elas, parecia que sua diversão ia diminuindo. Divertíamos, é claro, mas com outras coisas: filhos, assuntos familiares, artes, em fim. Mas não sei também se nessa época ele já não pensava em algo. Apenas posso dizer que a vida conjugal foi se perdendo entre a educação dos filhos, os deveres da propriedade, as conversas sem sentido, e, tudo isso, ajudou a esfriar inclusive o outro nível da relação (você sabe bem do que estou falando; espero não precisar escrever de forma explícita esse tipo de coisa, pois já me é difícil tratar disso assim tão discretamente). Não que não houvesse mais carinho, consideração, respeito mútuo, mas faltava algo que havia no início, aquela coisa que ardia de um modo bom e que apagava tudo mais em nossa volta. Sabes do que estou falando, não sabes?
Assim, minha cara, o fato é que tudo parece como o fog londrino em meus olhos. Não sei para onde vou, nem onde estou tateando. Se soubesses como sofro, minha querida irmã. Mas não é um sofrimento fraco, daqueles de menininhas sentimentais que choram pelo abandono do marido, é uma raiva, uma raiva que queima aqui dentro e me dá vontade de às vezes fazer coisas impensáveis. É nesses momentos que eu gostaria de ter a companhia de nosso querido pai. Ele saberia o que me dizer.
Acho que já me alonguei por demais. Fico por aqui, no aguardo de alguma notícia.
Sinceramente sua,
Lizzy.
P.S.: Escrevi também para aquela minha amiga de quem lhe falei, Jane Rochester. Ela, ao casar, viveu uma situação parecida com a minha, embora, em outros termos, totalmente diferente. Seu marido tinha alguns negócios em comum com Darcy, e nós duas ficamos muito amigas; ela é realmente um espírito vivaz. Porém, ela também não pode me ajudar quanto ao paradeiro de Darcy. E nesse caso, acho que não há qualquer tipo de complô dos homens, pois seu marido não tem, com Darcy, uma amizade como a de Bingley. Além disso, sua deficiência não ajudaria muito meu marido em qualquer tipo de empreitada (creio que já havia lhe falado sobre essa situação). Resta-me, agora, Deus me guarde dessa possibilidade, sondar Wickham.
Enquanto Jane lia a carta da irmã, seu marido ia até a estalagem que ficava no entroncamento da estrada, algumas milhas da sua casa, e outras milhas da cidade mais próxima. Havia dado a desculpa de ir deixar uma carta no posto do correio, paesar dessa tarefa ser geralmente dos empregados.
- Desculpa, querida. Mas preciso de ar puro para pensar um pouco. Essa história toda de sua irmã e meu amigo preocupa-me por demais.
Beijou-a e considrou que estava tudo bem. Montou em um de seus cavalos e dirigiu-se para o encontro com Darcy, onde iria avisar-lhe da chegada da carta e tentar dissuadí-lo de fazer aquela loucura, apesar de que o amigo parecia realmente muito resoluto, e Darcy, quando encontrado com essa disposição, dificilmente cedia.
Realmente me sinto muito feliz em saber que você e Bingley voltaram a se acertar, afinal, não havia cabimento vocês dois estarem se desentendendo por tão pouca coisa. Sei como a vida de casado, depois que vivemos muito tempo juntos, começa a ficar mais e mais difícil, e acho até que esse seja um dos motivos pelo sumiço de meu marido; mesmo assim, aquele amor de vocês não podia ser tão facilmente abalado por esses meros problemas de um relacionamento. É uma pena que Bingley não tenha tido nenhuma notícia de seu melhor amigo, pois obviamente depositava nele minhas mais fortes esperanças de encontrar alguma pista de Darcy. Porém, não posso deixar de lembrá-la que os homens são muito unidos e sempre estarão um do lado do outro nas suas tramóias, seja lá qual o resultado disso. Portanto, queria lhe pedir que prestasse atenção no comportamento de seu estimado companheiro, tentando perceber algum deslize que demonstre a verdade sobre seu conhecimento a respeito de Darcy; não posso deixar de suspeitar que ele saiba algo, mas que relute em contar-lhe justamente por saber que você viria logo revelar-me a verdade. Espero, contudo, que nada disso possa abalar a relação entre vocês dois novamente, pois sabes muito bem que ele não acredita estar traindo sua confiança ao encobrir o amigo.
Não, amada irmã, eu não saberia precisar o motivo para tão repentino sumiço. Devo crer que ele já pensava isso há tempo, caso contrário não teria tido a capacidade de preparar seus negócios e economias, bem como fez, para estar bem provido em sua viagem. Porém, se isso é verdade, não consigo ver nenhum sinal demonstrado por ele, durante todo esse tempo, de algum tipo de contrariedade. Tivemos momentos turbulentos, é óbvio, afinal, somos dois tipos de personalidades fortes, mas nada que depois não se resolvesse com uma boa conversa e algumas carícias. Aliás, ele era sempre o primeiro a se esforçar nesse sentido, e era sempre quem mais tentava reparar as rachaduras daquelas pequenas querelas.
Tens razão ao dizer que passamos por maus bocados quando, no início, eu devia ser apresentada ao seu mundo e acompanhá-lo em todos aqueles eventos. Eu era uma estranha naquele meio, e as palavras espalhadas por Lady Catherine realmente antecederam minha chegada. Porém, apesar dos olhares e torções de narizes, dos esforços para me intimidarem, eu acho que me saí bem. Sofri um bocado, pois percebia como era importante para ele que eu me realizasse naquela sociedade, assim como ele. Toda aquela despreocupação quanto a tais questões, quando estamos apaixonados e só vemos a vida ao lado da pessoa amada, acaba assim que a vida real nos atinge novamente. Ainda assim, creio que nada disso tenha abalado nossa relação, pois ele realmente se divertia muito com todas as fofocas e faltas de consideração, bem como com minha postura diante de tudo. Estávamos em sintonia tão grande que nada disso podia ser, ainda, algum motivo de desentendimento.
Conforme os anos foram passando, eu aprendi a movimentar-me muito bem naquele meio, e, isso sim, pareceu-me deixá-lo estranho. Era como se ele gostasse da época em que eu era uma deslocada. Conforme fomos ficando mais queridos e requisitados, e mesmo as mais altivas damas aprenderam a me respeitar, e eu aprendi a lidar com elas, parecia que sua diversão ia diminuindo. Divertíamos, é claro, mas com outras coisas: filhos, assuntos familiares, artes, em fim. Mas não sei também se nessa época ele já não pensava em algo. Apenas posso dizer que a vida conjugal foi se perdendo entre a educação dos filhos, os deveres da propriedade, as conversas sem sentido, e, tudo isso, ajudou a esfriar inclusive o outro nível da relação (você sabe bem do que estou falando; espero não precisar escrever de forma explícita esse tipo de coisa, pois já me é difícil tratar disso assim tão discretamente). Não que não houvesse mais carinho, consideração, respeito mútuo, mas faltava algo que havia no início, aquela coisa que ardia de um modo bom e que apagava tudo mais em nossa volta. Sabes do que estou falando, não sabes?
Assim, minha cara, o fato é que tudo parece como o fog londrino em meus olhos. Não sei para onde vou, nem onde estou tateando. Se soubesses como sofro, minha querida irmã. Mas não é um sofrimento fraco, daqueles de menininhas sentimentais que choram pelo abandono do marido, é uma raiva, uma raiva que queima aqui dentro e me dá vontade de às vezes fazer coisas impensáveis. É nesses momentos que eu gostaria de ter a companhia de nosso querido pai. Ele saberia o que me dizer.
Acho que já me alonguei por demais. Fico por aqui, no aguardo de alguma notícia.
Sinceramente sua,
Lizzy.
P.S.: Escrevi também para aquela minha amiga de quem lhe falei, Jane Rochester. Ela, ao casar, viveu uma situação parecida com a minha, embora, em outros termos, totalmente diferente. Seu marido tinha alguns negócios em comum com Darcy, e nós duas ficamos muito amigas; ela é realmente um espírito vivaz. Porém, ela também não pode me ajudar quanto ao paradeiro de Darcy. E nesse caso, acho que não há qualquer tipo de complô dos homens, pois seu marido não tem, com Darcy, uma amizade como a de Bingley. Além disso, sua deficiência não ajudaria muito meu marido em qualquer tipo de empreitada (creio que já havia lhe falado sobre essa situação). Resta-me, agora, Deus me guarde dessa possibilidade, sondar Wickham.
Enquanto Jane lia a carta da irmã, seu marido ia até a estalagem que ficava no entroncamento da estrada, algumas milhas da sua casa, e outras milhas da cidade mais próxima. Havia dado a desculpa de ir deixar uma carta no posto do correio, paesar dessa tarefa ser geralmente dos empregados.
- Desculpa, querida. Mas preciso de ar puro para pensar um pouco. Essa história toda de sua irmã e meu amigo preocupa-me por demais.
Beijou-a e considrou que estava tudo bem. Montou em um de seus cavalos e dirigiu-se para o encontro com Darcy, onde iria avisar-lhe da chegada da carta e tentar dissuadí-lo de fazer aquela loucura, apesar de que o amigo parecia realmente muito resoluto, e Darcy, quando encontrado com essa disposição, dificilmente cedia.
Reabertura
Entrei naquele quarto escuro e só conseguia avistar aquela imagem na janela, como a promessa de tempos melhores: era um por-do-sol, mas o astro rei se tornara apenas um pontinho branco em meio ao céu alaranjado, enquanto todo o resto era branco de neve. No primeiro plano um banco vazio também coberto pela branquidão. "Como queria estar sentado ali, olhando a paisagem, sem se preocupar com as correrias da vida, apenas imaginando e deixando o tempo passar", eu pensei.
Imediatamente comecei a limpar as teias de aranha, tirar o pó, sacudir as toalhas, reabrir as gavetas, tirar os papéis, pegar uma caneta e voltar a escrever. Não aguentava mais ver esse blog nessa pasmaceira completa. E o pior, deixei uma história pela metade. Os pobres personagens ficaram ali parados: estátuas de gelo prestes a derreter se eu não os colocasse em ação novamente.
Bom, que me desculpem os poucos leitores deste inoperante blog, mas agora, após um período de muitos afazeres (não que eles tenham acabado, mas já podem voltar a serem postergados), vamos reativar isso daqui. E já prometo de cara: amanhã sairá a terceira e penúltima parte da história de Mr. Darcy e seus cigarros.
Imediatamente comecei a limpar as teias de aranha, tirar o pó, sacudir as toalhas, reabrir as gavetas, tirar os papéis, pegar uma caneta e voltar a escrever. Não aguentava mais ver esse blog nessa pasmaceira completa. E o pior, deixei uma história pela metade. Os pobres personagens ficaram ali parados: estátuas de gelo prestes a derreter se eu não os colocasse em ação novamente.
Bom, que me desculpem os poucos leitores deste inoperante blog, mas agora, após um período de muitos afazeres (não que eles tenham acabado, mas já podem voltar a serem postergados), vamos reativar isso daqui. E já prometo de cara: amanhã sairá a terceira e penúltima parte da história de Mr. Darcy e seus cigarros.
segunda-feira, 25 de abril de 2011
O que estou ouvindo
Devido à correria dos últimos dias, não consegui ainda escrever a terceira parte de "Os Cigarros de Mr. Darcy". Mas para não deixar o blog mofando vou entrar na onda das listas do que ando ouvindo nos últimos dias. É mais rápido e fácil. Quer dizer... pensei que seria, mas como sempre estou ouvindo muita coisa, tive que selecionar bastante. Quase podia colocar uma lista com os CDs que ando ouvindo, mas vou deixar isso para uma próxima. Assim, tive que ser bem rigoroso e só colocar aquilo que mais tocou no meu media player nessas últimas semanas. Ficou uma lista de treze músicas com duas bonus track. Estão em ordem aleatória, sem nenhum tipo de prioridade.
1 - A Little Piece – The Jezabels
2 - Prayer for the paranoid – Mojave 3
3 - Shut your eyes – Snow Patrol
4 - Cellos Song – Nick Drake (na versão de The Books and Jose Gonzalez)
5 - One of these things first - Nick Drake
6 - Things Behind the sun - Nick Drake
7 - Madder Red – Yeasayer
8 - 40 day dream – Edward Sharpe & The Magnetic Zeros
9 - Home – Edward Sharpe & The Magnetic Zeros
10 - Steam Engine – My Morning Jacket
11 - Librarian – My Morning Jacket
12 - Needles in My Eyes – The Beta Band
13 - Dry the rain – The Beta Band
14 - Hundreds of Languages – GangGajang
15 - Golden Slubers/Carry That Weight/The End - Beatles
Tá, eu trapaceei. Essa última são três músicas, mas se você ouvir bem vai ver que até dá pra considerar como uma só.
1 - A Little Piece – The Jezabels
2 - Prayer for the paranoid – Mojave 3
3 - Shut your eyes – Snow Patrol
4 - Cellos Song – Nick Drake (na versão de The Books and Jose Gonzalez)
5 - One of these things first - Nick Drake
6 - Things Behind the sun - Nick Drake
7 - Madder Red – Yeasayer
8 - 40 day dream – Edward Sharpe & The Magnetic Zeros
9 - Home – Edward Sharpe & The Magnetic Zeros
10 - Steam Engine – My Morning Jacket
11 - Librarian – My Morning Jacket
12 - Needles in My Eyes – The Beta Band
13 - Dry the rain – The Beta Band
14 - Hundreds of Languages – GangGajang
15 - Golden Slubers/Carry That Weight/The End - Beatles
Tá, eu trapaceei. Essa última são três músicas, mas se você ouvir bem vai ver que até dá pra considerar como uma só.
sábado, 16 de abril de 2011
Os Cigarros de Mr. Darcy - Parte II
II
Enquanto a carruagem seguia seu trajeto, Mr. Darcy pensava na resolução que havia tomado. O seu casamento era o último, entre todos os conhecidos, que ele imaginaria dar qualquer tipo de problema. Não porque tendemos a sempre achar que as coisas na nossa vida estão melhores do que na dos outros, mas porque realmente não via como sua paixão por Lizzy pudesse arrefecer.
Por exemplo, quanto a Bingley e Jane, ele já esperava que começassem a ter dificuldades assim que a vida adulta realmente os atingisse. Eram dois sonhadores românticos e ambos com personalidades muito fracas; logo estariam vivendo com problema de não haver um pulso forte que conduzisse a relação. Não o impressionou sua última visita ao casal, quando notou como mal podiam agüentar ficarem juntos no mesmo cômodo; havia algo como um fastio no casal. Bingley reclamou-lhe que não agüentava mais o silêncio e falta de imaginação da moça, enquanto para Lizzy, Jane protestou a falta de firmeza do marido e sua indisposição ao silêncio. Ainda assim, Darcy sabia que os dois permaneceriam juntos e arranjariam formas de melhorarem sua convivência, pois, justamente por serem fracos, não teriam coragem para tomar uma atitude mais drástica, assim como ele estava tomando. Ele sabia como as regras da sociedade pesavam sobre os ombros e a mente dos dois, mesmo que elas já tivessem mudado um pouco nesses anos todos.
Porém, podia dizer que Lydia e Wickham surpreenderam-no: o único casamento a ter realmente dado certo e se mantido firme; pareciam estar cada vez mais unidos. Tentava entender como, mas sua dificuldade em obter uma resposta dava-se pelo fato de não conhecer uma regra muito básica: todo homem, por mais incorreto, desregrado e interesseiro que seja, vai ser, um dia, amarrado por uma mulher que tenha as mesmas qualidades e, ainda por cima, seja muito apaixonada. E, por mais repreensões que pudessem recair sobre Lydia, era certo que ela havia se tornado uma mulher exatamente da estirpe mencionada. Sua paixão, seu gênio rebelde, que levava àquelas atitudes muitas vezes reprováveis, e sua alegria juvenil certamente a transformavam em uma parceira ideal ao rapaz. A única coisa que Darcy conseguia pensar sobre aquilo era que justamente as loucuras cometidas pela menina haviam mostrado a Wickham com quem ele estava tratando: alguém da sua espécie, o que, além de tê-lo feito apaixonar-se, ainda o deixou bastante comportado. Não podemos dizer que Darcy estava errado, pois sua dedução, de certa forma, é corroborada pela regra.
Darcy, ao chegar a uma primeira parada, achou que por mais que pudesse tentar encontrar desculpas, não havia nada que o isentasse da culpa por aquela situação. Lizzy não havia mudado seu jeito de ser, nem seus sentimentos para com ele. O problema era realmente a natureza do homem e o fato de ele não conseguir fugir dela.
Ao mesmo tempo, por uma dessas brincadeiras do destino, ou justamente por suas conjunções mentais tão próprias, Elizabeth Darcy refletia no mesmo ponto: por que, de todas as suas irmãs, justo com ela estava acontecendo aquilo? Afinal, ela sabia que no caso de Jane e Bingley seria apenas uma crise; o amor dos dois seria maior. Lydia não a surpreendera exatamente, ainda assim nunca os imaginara o casal ideal como eram agora, mas estava feliz com isso. Mary podia ter deixado sua mãe revoltada com aquela atitude, pois não era algo apropriado a uma moça, mas Lizzy – assim como seu pai – sabia que aquele era o único destino para ela: não casar, abandonar o lar para estudar por conta própria e sair viajando pelo mundo fazendo pesquisas científicas por lugares exóticos. E ela, afinal, estava feliz, agora, junto daquele inglês que viajava em um navio com nome de raça de cachorro. Como era mesmo nome do rapaz? Charles? Algo assim. Apesar de aquela situação causar certo escândalo, pois o jovem é trinta e dois anos mais moço do que ela, Mary havia garantido-lhe, em sua última carta, que a relação dos dois era como de irmãos, e que havia um respeito mútuo, entre dois amantes das ciências naturais.
Além disso, foi Mary quem salvou a situação de Kitty, que começava a ficar para titia, ao ceder um marido à irmã. Ele era um americano muito rico, também dedicado a estudos, com quem Mary teve algum tipo de relacionamento íntimo durante suas viagens, até decidir que casar era para outro tipo de mulher e que sua irmã mais nova certamente faria mais proveito de um marido. Apresentá-lo a Kitty e preparar o terreno para a união acabou sendo uma decisão puramente lógica. Tal casamento, por sinal, era o que Lizzy tinha menos notícias, pois eles, obviamente, moravam nos Estados Unidos, mas a última notícia dava conta de que estavam bem e com filhos.
Lizzy pensava nas suas irmãs e seus respectivos destinos não só pela situação em que se encontrava, mas também por conta da troca de cartas com Jane, através da qual tentava encontrar pistas do paradeiro de seu marido; sabia que o melhor amigo dele deveria saber algo. Porém, a última carta recebida causou mais revolta do que esperança em seu espírito, devido à parcimônia do cunhado para com o ingrato Mr. Darcy. E ela não podia mais esperar para escrever uma resposta a Jane.
Continua... (no próximo capítulo, a carta de Lizzy, e uma pista de Mr. Darcy)
Enquanto a carruagem seguia seu trajeto, Mr. Darcy pensava na resolução que havia tomado. O seu casamento era o último, entre todos os conhecidos, que ele imaginaria dar qualquer tipo de problema. Não porque tendemos a sempre achar que as coisas na nossa vida estão melhores do que na dos outros, mas porque realmente não via como sua paixão por Lizzy pudesse arrefecer.
Por exemplo, quanto a Bingley e Jane, ele já esperava que começassem a ter dificuldades assim que a vida adulta realmente os atingisse. Eram dois sonhadores românticos e ambos com personalidades muito fracas; logo estariam vivendo com problema de não haver um pulso forte que conduzisse a relação. Não o impressionou sua última visita ao casal, quando notou como mal podiam agüentar ficarem juntos no mesmo cômodo; havia algo como um fastio no casal. Bingley reclamou-lhe que não agüentava mais o silêncio e falta de imaginação da moça, enquanto para Lizzy, Jane protestou a falta de firmeza do marido e sua indisposição ao silêncio. Ainda assim, Darcy sabia que os dois permaneceriam juntos e arranjariam formas de melhorarem sua convivência, pois, justamente por serem fracos, não teriam coragem para tomar uma atitude mais drástica, assim como ele estava tomando. Ele sabia como as regras da sociedade pesavam sobre os ombros e a mente dos dois, mesmo que elas já tivessem mudado um pouco nesses anos todos.
Porém, podia dizer que Lydia e Wickham surpreenderam-no: o único casamento a ter realmente dado certo e se mantido firme; pareciam estar cada vez mais unidos. Tentava entender como, mas sua dificuldade em obter uma resposta dava-se pelo fato de não conhecer uma regra muito básica: todo homem, por mais incorreto, desregrado e interesseiro que seja, vai ser, um dia, amarrado por uma mulher que tenha as mesmas qualidades e, ainda por cima, seja muito apaixonada. E, por mais repreensões que pudessem recair sobre Lydia, era certo que ela havia se tornado uma mulher exatamente da estirpe mencionada. Sua paixão, seu gênio rebelde, que levava àquelas atitudes muitas vezes reprováveis, e sua alegria juvenil certamente a transformavam em uma parceira ideal ao rapaz. A única coisa que Darcy conseguia pensar sobre aquilo era que justamente as loucuras cometidas pela menina haviam mostrado a Wickham com quem ele estava tratando: alguém da sua espécie, o que, além de tê-lo feito apaixonar-se, ainda o deixou bastante comportado. Não podemos dizer que Darcy estava errado, pois sua dedução, de certa forma, é corroborada pela regra.
Darcy, ao chegar a uma primeira parada, achou que por mais que pudesse tentar encontrar desculpas, não havia nada que o isentasse da culpa por aquela situação. Lizzy não havia mudado seu jeito de ser, nem seus sentimentos para com ele. O problema era realmente a natureza do homem e o fato de ele não conseguir fugir dela.
Ao mesmo tempo, por uma dessas brincadeiras do destino, ou justamente por suas conjunções mentais tão próprias, Elizabeth Darcy refletia no mesmo ponto: por que, de todas as suas irmãs, justo com ela estava acontecendo aquilo? Afinal, ela sabia que no caso de Jane e Bingley seria apenas uma crise; o amor dos dois seria maior. Lydia não a surpreendera exatamente, ainda assim nunca os imaginara o casal ideal como eram agora, mas estava feliz com isso. Mary podia ter deixado sua mãe revoltada com aquela atitude, pois não era algo apropriado a uma moça, mas Lizzy – assim como seu pai – sabia que aquele era o único destino para ela: não casar, abandonar o lar para estudar por conta própria e sair viajando pelo mundo fazendo pesquisas científicas por lugares exóticos. E ela, afinal, estava feliz, agora, junto daquele inglês que viajava em um navio com nome de raça de cachorro. Como era mesmo nome do rapaz? Charles? Algo assim. Apesar de aquela situação causar certo escândalo, pois o jovem é trinta e dois anos mais moço do que ela, Mary havia garantido-lhe, em sua última carta, que a relação dos dois era como de irmãos, e que havia um respeito mútuo, entre dois amantes das ciências naturais.
Além disso, foi Mary quem salvou a situação de Kitty, que começava a ficar para titia, ao ceder um marido à irmã. Ele era um americano muito rico, também dedicado a estudos, com quem Mary teve algum tipo de relacionamento íntimo durante suas viagens, até decidir que casar era para outro tipo de mulher e que sua irmã mais nova certamente faria mais proveito de um marido. Apresentá-lo a Kitty e preparar o terreno para a união acabou sendo uma decisão puramente lógica. Tal casamento, por sinal, era o que Lizzy tinha menos notícias, pois eles, obviamente, moravam nos Estados Unidos, mas a última notícia dava conta de que estavam bem e com filhos.
Lizzy pensava nas suas irmãs e seus respectivos destinos não só pela situação em que se encontrava, mas também por conta da troca de cartas com Jane, através da qual tentava encontrar pistas do paradeiro de seu marido; sabia que o melhor amigo dele deveria saber algo. Porém, a última carta recebida causou mais revolta do que esperança em seu espírito, devido à parcimônia do cunhado para com o ingrato Mr. Darcy. E ela não podia mais esperar para escrever uma resposta a Jane.
Continua... (no próximo capítulo, a carta de Lizzy, e uma pista de Mr. Darcy)
sexta-feira, 8 de abril de 2011
Os Cigarros de Mr. Darcy - Parte I
I
É uma verdade universalmente conhecida que um homem em posse de boa fortuna e com mais de cinqüenta anos deve estar em busca de uma amante que seja bons anos mais nova do que ele.
E, por muito que seus sentimentos e pensamentos sejam conhecidos, sua mulher sempre será a última a notar isso.
Por que deveria ser diferente com Mr. Darcy?
Certo dia, ele olhou para sua amada Lizzy e viu uma matrona já passada dos quarenta, cuidando da postura da pequena Charlote – a mais nova e única menina entre seus quatro viçosos rapazes. Sua esposa ainda tinha aquele olhar e inteligência que tanto o conquistou; porém, se, quando estamos com nossos quase trinta anos – idade de Mr. Darcy ao se apaixonar por Lizzy –, tais elementos importam tanto quanto a beleza, com o passar do tempo e a com convivência eles vão perdendo em importância. Ao chegar aos cinqüenta, exatamente como Mr. Darcy chegara, um homem busca uma mulher de carnes mais firmes, de olhos mais lascivos, de cheiro ainda virginal e com muita energia. Sua cara Lizzy, após cinco filhos, já não tinha mais nenhuma dessas qualidades; muito pelo contrário, parecia agora ser mais velha do que ele.
Mr. Darcy teve uma idéia imprescindível ao analisar todas essas questões. Imediatamente largou a pena que já não usava mais, pois não conseguia se concentrar na carta que escrevia, levantou-se e foi até seu cofre.
Elizabeth estava com a pequena Charlote e a preceptora na sala de estudos lendo algum livro enquanto a filha pintava uma cesta de frutas, quando ouviu a porta se abrir.
- Querida, sairei uns minutos para comprar cigarros – anunciou seu marido.
Imersa que estava em sua leitura e na apreciação da sua pequena aprendendo mais um dos muitos dotes que ela não pode aprender na sua infância, Elizabeth Darcy apenas respondeu positivamente com um muxoxo, sem nem mesmo dar atenção a todas as implicações desastrosas daquele anúncio estranho e misterioso. Esses adjetivos, inclusive, nem mesmo passaram por sua cabeça no momento do enunciado de Mr. Darcy, mas ocorreram-lhe horas depois, quando já era noite e ele ainda não havia voltado.
Elizabeth estava em desespero. Os empregados já haviam voltado de Lambton onde não obtiveram nenhuma notícia de seu marido. Obviamente, o primeiro e rápido pensamento que passara por sua cabeça, quando a tarde começou a se estender sobre Pemberley e seu marido não voltara, foi que poderia ter acontecido alguma desgraça com ele, por isso mandara os homens em sua busca. Mas fora só eles saírem, e ela conseguir se acalmar um pouco para poder colocar seus pensamentos em ordem, que tudo pareceu mais claro. Era obvio! Seu marido não fumava, e mesmo que, por algum desses caprichos misteriosos e fúteis que atingem homens velhos e entediados, lhe tivesse, repentinamente, nascido tal vontade, ele mandaria algum empregado a comprar os objetos desse capricho.
Elizabeth teve confirmada sua suspeita com o retorno dos empregados, e uma repentina luz acendeu em sua cabeça; correu até o escritório de Darcy, onde ficava o cofre, e foi diretamente a ele. Ali estaria a confirmação de todas suas intuições sobre o caso. E, ao abri-lo, ela não teve surpresa nenhuma.
Continua.
É uma verdade universalmente conhecida que um homem em posse de boa fortuna e com mais de cinqüenta anos deve estar em busca de uma amante que seja bons anos mais nova do que ele.
E, por muito que seus sentimentos e pensamentos sejam conhecidos, sua mulher sempre será a última a notar isso.
Por que deveria ser diferente com Mr. Darcy?
Certo dia, ele olhou para sua amada Lizzy e viu uma matrona já passada dos quarenta, cuidando da postura da pequena Charlote – a mais nova e única menina entre seus quatro viçosos rapazes. Sua esposa ainda tinha aquele olhar e inteligência que tanto o conquistou; porém, se, quando estamos com nossos quase trinta anos – idade de Mr. Darcy ao se apaixonar por Lizzy –, tais elementos importam tanto quanto a beleza, com o passar do tempo e a com convivência eles vão perdendo em importância. Ao chegar aos cinqüenta, exatamente como Mr. Darcy chegara, um homem busca uma mulher de carnes mais firmes, de olhos mais lascivos, de cheiro ainda virginal e com muita energia. Sua cara Lizzy, após cinco filhos, já não tinha mais nenhuma dessas qualidades; muito pelo contrário, parecia agora ser mais velha do que ele.
Mr. Darcy teve uma idéia imprescindível ao analisar todas essas questões. Imediatamente largou a pena que já não usava mais, pois não conseguia se concentrar na carta que escrevia, levantou-se e foi até seu cofre.
Elizabeth estava com a pequena Charlote e a preceptora na sala de estudos lendo algum livro enquanto a filha pintava uma cesta de frutas, quando ouviu a porta se abrir.
- Querida, sairei uns minutos para comprar cigarros – anunciou seu marido.
Imersa que estava em sua leitura e na apreciação da sua pequena aprendendo mais um dos muitos dotes que ela não pode aprender na sua infância, Elizabeth Darcy apenas respondeu positivamente com um muxoxo, sem nem mesmo dar atenção a todas as implicações desastrosas daquele anúncio estranho e misterioso. Esses adjetivos, inclusive, nem mesmo passaram por sua cabeça no momento do enunciado de Mr. Darcy, mas ocorreram-lhe horas depois, quando já era noite e ele ainda não havia voltado.
Elizabeth estava em desespero. Os empregados já haviam voltado de Lambton onde não obtiveram nenhuma notícia de seu marido. Obviamente, o primeiro e rápido pensamento que passara por sua cabeça, quando a tarde começou a se estender sobre Pemberley e seu marido não voltara, foi que poderia ter acontecido alguma desgraça com ele, por isso mandara os homens em sua busca. Mas fora só eles saírem, e ela conseguir se acalmar um pouco para poder colocar seus pensamentos em ordem, que tudo pareceu mais claro. Era obvio! Seu marido não fumava, e mesmo que, por algum desses caprichos misteriosos e fúteis que atingem homens velhos e entediados, lhe tivesse, repentinamente, nascido tal vontade, ele mandaria algum empregado a comprar os objetos desse capricho.
Elizabeth teve confirmada sua suspeita com o retorno dos empregados, e uma repentina luz acendeu em sua cabeça; correu até o escritório de Darcy, onde ficava o cofre, e foi diretamente a ele. Ali estaria a confirmação de todas suas intuições sobre o caso. E, ao abri-lo, ela não teve surpresa nenhuma.
Continua.
segunda-feira, 4 de abril de 2011
Uma História Simples Três - As Histórias que Nos Contavam
Um homem de trinta e seis anos e outro de sessenta e cinco estão sentados em frente ao bonito fogão a lenha, de ferro fundido escuro e bem trabalhado. Eles sorriem e tomam chimarrão. Enquanto isso, o mais velho relembra algumas das histórias que contava àquele seu filho.
“Lembro de uma vez. Quando a gente ainda morava no interior de Santa Maria, eu acho. Não sei como um espelho apareceu quebrado em cima do telhado da casa, e teu vô me mandou subir pra limpar. Eu era o mais velho dos sete filhos e tinha de fazer essas coisas. Eu subi e comecei a varrer os caquinhos, pois estava bem quebrado. Bem espatifado. Foi quando tuas tias, não lembro, mas acho que era a Marcela e a Doris, mais umas amiguinhas delas, vinham vindo e viram aquelas coisinhas brilhantes caindo do telhado, e me perguntaram o que era aquilo. Eu disse que era o pedaço de uma estrela que tinha caído por aí. E que uma parte caíra no telhado. Elas olhavam desconfiadas para os cacos brilhantes no chão e não acreditavam. Daí uma delas, que era mais esperta, perguntou se não era um espelho e eu retruquei, mas como um espelho ia ter parado lá em cima? E elas, então, ficaram olhando pra mim, piscando com olhos assustados, mas acreditando na história da estrela.”
Ele ri gostoso, olhando para as mãos enrugadas sobre os joelhos e se arruma na cadeira para poder receber a cuia. E é a vez do homem mais novo falar:
“Tem as histórias da mãe, também. Mãe vem cá. Senta aqui e conta alguma coisa.”
Uma senhora também de sessenta e cinco anos traz um mochinho e senta-se entre os dois. Arruma os cabelos curtos e levemente grisalhos, e fica sem saber para onde olhar.
“Ah, mas eu nem tenho histórias. Desse tipo assim, eu não tenho.”
“Conta aquela das libélulas, então, mãe.”
“Mas aquilo nem história é. Era só uma brincadeira das crianças lá da rua. Quando os pais cortavam a grama, enchia de libélula nos pátios e nós saíamos a caçar. Depois que cada um tinha a sua, a gente amarrava uma linha nelas e depois soltava a libélula, e ficava segurando a linha. Às vezes ficava uma fileira de criança cada um segurando sua linha com uma libélula e vendo qual voava mais alto. Mas isso nem é história. Era só uma brincadeira nossa.”
Então, o velho ri e diz, com as bochechas repuxadas:
“Brincadeira malvada, isso sim.”
“Não é? Agora conta aquela da grama, querido.”
Ele da mais uma risada jogando a cabeça para trás e começa:
“Essa é boa. Isso era quando eu já estava noivo da tua mãe e era quem sempre arrumava e plantava o jardim do pai dela. E o teu primo Dinho tinha que ajudar. Era um mulecote ainda. Às vezes, ele tinha que passar um tempo comigo, metido nuns lodaçais danados, ajuntando terra e adubo. E depois ainda agüentar ficar plantando grama e flor no pátio da frente. Pra espantar um pouco o mau humor eu inventei que elas eram sensíveis e só cresciam bonitas quando plantadas com música, e que ele tinha de assoviar pra elas enquanto plantava por que se não elas não cresciam e ele ia ter de plantar tudo de novo. Daí ele se colocava a plantar e assoviar junto. E as tuas tias desatavam a rir do coitado que acreditava nas histórias. Um dia, a irmã mais velha dele, que já não acreditava nas minhas histórias, plantou uma flor num dos canteiros e não assoviou. Depois as flores tinham morrido e o moleque veio correndo pra mim pra dizer que a irmã não tinha assoviado enquanto plantava e por isso as plantas dela morreram.”
E mais uma vez ele riu gostoso ao acabar, dessa vez, acompanhado das risadas dos outros dois. Então, o homem mais novo se vira para o notebook sobre a mesa na frente deles e fala com o garoto que aparece na tela.
“E aí filho? Essas são algumas das histórias que eu ouvia quando criança. Tá bom assim, ou precisa mais?"
“Não pai. Tá bom. Brigado. Vou embora. Que fala com a mãe?”
“Não filho. Não precisa.”
“Então tchau pai.”
“Tchau filho. Beijo. Te cuida..."
Mas o garoto já havia desligado o skype após o tchau e deixado o homem com uma nítida sensação de frio, apesar do calor que do fogão à lenha emanava para toda a sala.
Redação da Escola
Era uma ves uma cidade um monte estranha. E um menino foi mora na cidade estranha. Um dia o menino entrou na rua onde morava. E na rua tinha monte de menina segurando linha com libélula na ponta.
O menino achou estranho. Ele foi pedir pra menina o que era aquilo. A menina disse:
- Nos somos bruxas. Nos fazemos meninos virar libélula. Agora nos tamos treinando as libélulas pra corrida das libélulas. Você não sabia?
O monte de menina riu do menino. Aí o menino ficou brabo com o monte de menina e foi embora.
O menino tinha um pai muito legau. E o pai do menino contava monte de história. O menino ajudava o pai fasendo tudo. Um dia o pai disse:
- Você tem um poder mágico. E você tem que assobiar pra grama quando planta ela. Pra ela crecer um monte e bonita.
Aí o menino assobiou e plantou grama. E o monte de menina riu do menino mais uma ves.
Um dia o menino teve uma ideia. E ele quebrou um espelho no teto da casa. E o pai mandou ele limpa. Aí o monte de menina viu e pediu o que era. E o menino disse:
- É uma estrela que caiu aqui.
Mas o monte de menina não acreditou e disse:
- Mentira. Isso é um espelho.
E o menino disse:
- Um espelho nunca ia cai aqui!
Aí o monte de menina ficou com medo. E o menino disse:
- Eu sou um bruxo que faz menina vira estrela. E a menina que ri de mim eu viro em estrela e derrubo lá de cima.
E o monte de menina ficou com medo e nunca mais riu do menino.
“Lembro de uma vez. Quando a gente ainda morava no interior de Santa Maria, eu acho. Não sei como um espelho apareceu quebrado em cima do telhado da casa, e teu vô me mandou subir pra limpar. Eu era o mais velho dos sete filhos e tinha de fazer essas coisas. Eu subi e comecei a varrer os caquinhos, pois estava bem quebrado. Bem espatifado. Foi quando tuas tias, não lembro, mas acho que era a Marcela e a Doris, mais umas amiguinhas delas, vinham vindo e viram aquelas coisinhas brilhantes caindo do telhado, e me perguntaram o que era aquilo. Eu disse que era o pedaço de uma estrela que tinha caído por aí. E que uma parte caíra no telhado. Elas olhavam desconfiadas para os cacos brilhantes no chão e não acreditavam. Daí uma delas, que era mais esperta, perguntou se não era um espelho e eu retruquei, mas como um espelho ia ter parado lá em cima? E elas, então, ficaram olhando pra mim, piscando com olhos assustados, mas acreditando na história da estrela.”
Ele ri gostoso, olhando para as mãos enrugadas sobre os joelhos e se arruma na cadeira para poder receber a cuia. E é a vez do homem mais novo falar:
“Tem as histórias da mãe, também. Mãe vem cá. Senta aqui e conta alguma coisa.”
Uma senhora também de sessenta e cinco anos traz um mochinho e senta-se entre os dois. Arruma os cabelos curtos e levemente grisalhos, e fica sem saber para onde olhar.
“Ah, mas eu nem tenho histórias. Desse tipo assim, eu não tenho.”
“Conta aquela das libélulas, então, mãe.”
“Mas aquilo nem história é. Era só uma brincadeira das crianças lá da rua. Quando os pais cortavam a grama, enchia de libélula nos pátios e nós saíamos a caçar. Depois que cada um tinha a sua, a gente amarrava uma linha nelas e depois soltava a libélula, e ficava segurando a linha. Às vezes ficava uma fileira de criança cada um segurando sua linha com uma libélula e vendo qual voava mais alto. Mas isso nem é história. Era só uma brincadeira nossa.”
Então, o velho ri e diz, com as bochechas repuxadas:
“Brincadeira malvada, isso sim.”
“Não é? Agora conta aquela da grama, querido.”
Ele da mais uma risada jogando a cabeça para trás e começa:
“Essa é boa. Isso era quando eu já estava noivo da tua mãe e era quem sempre arrumava e plantava o jardim do pai dela. E o teu primo Dinho tinha que ajudar. Era um mulecote ainda. Às vezes, ele tinha que passar um tempo comigo, metido nuns lodaçais danados, ajuntando terra e adubo. E depois ainda agüentar ficar plantando grama e flor no pátio da frente. Pra espantar um pouco o mau humor eu inventei que elas eram sensíveis e só cresciam bonitas quando plantadas com música, e que ele tinha de assoviar pra elas enquanto plantava por que se não elas não cresciam e ele ia ter de plantar tudo de novo. Daí ele se colocava a plantar e assoviar junto. E as tuas tias desatavam a rir do coitado que acreditava nas histórias. Um dia, a irmã mais velha dele, que já não acreditava nas minhas histórias, plantou uma flor num dos canteiros e não assoviou. Depois as flores tinham morrido e o moleque veio correndo pra mim pra dizer que a irmã não tinha assoviado enquanto plantava e por isso as plantas dela morreram.”
E mais uma vez ele riu gostoso ao acabar, dessa vez, acompanhado das risadas dos outros dois. Então, o homem mais novo se vira para o notebook sobre a mesa na frente deles e fala com o garoto que aparece na tela.
“E aí filho? Essas são algumas das histórias que eu ouvia quando criança. Tá bom assim, ou precisa mais?"
“Não pai. Tá bom. Brigado. Vou embora. Que fala com a mãe?”
“Não filho. Não precisa.”
“Então tchau pai.”
“Tchau filho. Beijo. Te cuida..."
Mas o garoto já havia desligado o skype após o tchau e deixado o homem com uma nítida sensação de frio, apesar do calor que do fogão à lenha emanava para toda a sala.
Redação da Escola
Era uma ves uma cidade um monte estranha. E um menino foi mora na cidade estranha. Um dia o menino entrou na rua onde morava. E na rua tinha monte de menina segurando linha com libélula na ponta.
O menino achou estranho. Ele foi pedir pra menina o que era aquilo. A menina disse:
- Nos somos bruxas. Nos fazemos meninos virar libélula. Agora nos tamos treinando as libélulas pra corrida das libélulas. Você não sabia?
O monte de menina riu do menino. Aí o menino ficou brabo com o monte de menina e foi embora.
O menino tinha um pai muito legau. E o pai do menino contava monte de história. O menino ajudava o pai fasendo tudo. Um dia o pai disse:
- Você tem um poder mágico. E você tem que assobiar pra grama quando planta ela. Pra ela crecer um monte e bonita.
Aí o menino assobiou e plantou grama. E o monte de menina riu do menino mais uma ves.
Um dia o menino teve uma ideia. E ele quebrou um espelho no teto da casa. E o pai mandou ele limpa. Aí o monte de menina viu e pediu o que era. E o menino disse:
- É uma estrela que caiu aqui.
Mas o monte de menina não acreditou e disse:
- Mentira. Isso é um espelho.
E o menino disse:
- Um espelho nunca ia cai aqui!
Aí o monte de menina ficou com medo. E o menino disse:
- Eu sou um bruxo que faz menina vira estrela. E a menina que ri de mim eu viro em estrela e derrubo lá de cima.
E o monte de menina ficou com medo e nunca mais riu do menino.
terça-feira, 29 de março de 2011
Uma História Simples Dois – O Violão e as Folhas
A barba desgrenhada, os cabelos sujos, a roupa puída, os olhos perdidos e um chapéu de confederado com um furo no lado esquerdo derreado na cabeça. Assim aquele homem se encontrava sentado, solitário, apenas com um violão a tira colo, e sua voz rouca soando pelo saguão da rodoviária. O violão, por sinal, tinha um remendo de fita marrom no braço e cordas improvisadas, mas o som não era de todo ruim, pois estava bem afinado. Era de corpo pequeno, mas o som era bonito. A voz do homem também parecia pequena, mas era bonita. Apesar da rouquidão, era pequena. Apesar do inglês meio tupiniquim, era bonita. E sim. Ele cantava em inglês. Cantava Johnny Cash e Bob Dylan.
De repente, começou a tocar Blowin’ in the Wind. Mas cantava um pouco diferente. Cantava a primeira estrofe com partes das outras estrofes, e depois a segunda parte era inventada por ele mesmo:
How many roads must a man walk down,
Before you call him a man?
Yes and how many times must a man look up,
Before he can see the sky?
Yes and how many times can a man turn his head,
Pretend that he just doesn't see?
The answer, my friend, is blowin' in the wind
The answer is blowin' in the wind
How many houses must a man lives in,
Before he calls it a home?
Yes and how many women must a man lives together,
Before he calls her a lover?
The answer, my friend, is hidin’ in the rubbish
The answer is hidin’ in the rubbish
Fiquei ouvindo ele algum tempo, surpreso com a invencionice. Ele me olhou e perguntou se eu não daria nada. Coloquei uma nota de cinco no pote e ele agradeceu com um toque no chapéu. Aproveitei a pausa para perguntar como ele sabia inglês. Disse que de onde veio todas as crianças aprendiam inglês. E ele sabia um pouco mais por causa da música, que sempre amara. Perguntei de onde ele conhecia Johnny Cash e Bob Dylan. Disse que seu pai os apresentara quando ainda era criança e já começara a aprender violão.
Ele era carroceiro e levava tudo para reciclagem, mas ficava com algumas coisas. Um dia achou o violão e os papéis no lixo. Se perguntou por que alguém teria jogado aquilo fora: “música é a única coisa de bom nessa vida”. Eu disse que talvez fosse alguém desapontado consigo mesmo e com sua música. Ele me olhou estranho. Eu me senti estranho. Ele riu e disse que essa deveria ser uma pessoa mesmo muito triste. Daí continuou sua história. Disse que quando viu o violão lembrou quando tocava com o pai e os amigos no interior. Ficou com saudade e o concertou. Pegou as folhas e tentou lembrar como era tocar. Fazia realmente muito tempo. Eu disse que estava boa, dentro do ritmo.
Eu perguntei como ele tinha vindo parar na capital. Contou que, como todo músico do interior de dezenove, vinte anos, veio com o sonho do estrelato. As pessoas da cidade dele diziam que ele era bom. Veio com pouco dinheiro e muita convicção: “mas isso só mesmo não basta”. Tocou em alguns bares, tentou mostrar composição própria pra alguns radialistas, mas nada. Não conseguia muito, a não ser tocar em bares e ruas. Ainda tinha dinheiro para voltar, mas que nisso nem pensava porque voltar daquele jeito era vergonha. E não queria acabar como peão de estância, depois que conheceu a cidade.
Ficou. Tentou mais um pouco, mas o dinheiro acabou. O pai não tinha mais pra mandar. Acabou indo viver na rua: primeiro cantando. Mas com o som eletrônico, o trabalho nos bares era mais disputado e ele não tinha dinheiro pra equipamento melhor. Precisaria de um parceiro com teclado, no mínimo, mas não conhecia muita gente. Se obrigou a vender tudo, até mesmo o violão, e foi ser catador de lixo. O pouco que ganhava era para viver, mas tentava sempre guardar um pouco e juntar a passagem de volta. Depois de tudo que tinha passado, voltou a preferir ser peão de estância. Depois de um tempo, achou o violão e as folhas. Estava tão cansado que resolveu tentar ganhar dinheiro de outra forma. E lá estava ele, na rodoviária, tentando juntar o resto da passagem.
Pedi quanto ainda faltava. Eu pagaria o resto pelo violão e as folhas. Ele olhou com esperteza para mim e depois para o violão. Disse que esperava voltar com ele porque tinha se apegado. Como eu não respondi nada, ele me olhou de volta e pediu porque eu queria aquele lixo velho. Porque fui eu que joguei fora, eu respondi. Ele me olhou nos olhos e eu mantive o olhar. Não sei bem o que tinha naquele olhar. Gostaria de ter descoberto. Me fez pensar muito. Mas realmente não sei.
Depois disso ele aceitou a oferta. Eu voltei para casa muito contemplativo e cheio de esperanças, junto com o violão e as folhas velhas.
De repente, começou a tocar Blowin’ in the Wind. Mas cantava um pouco diferente. Cantava a primeira estrofe com partes das outras estrofes, e depois a segunda parte era inventada por ele mesmo:
How many roads must a man walk down,
Before you call him a man?
Yes and how many times must a man look up,
Before he can see the sky?
Yes and how many times can a man turn his head,
Pretend that he just doesn't see?
The answer, my friend, is blowin' in the wind
The answer is blowin' in the wind
How many houses must a man lives in,
Before he calls it a home?
Yes and how many women must a man lives together,
Before he calls her a lover?
The answer, my friend, is hidin’ in the rubbish
The answer is hidin’ in the rubbish
Fiquei ouvindo ele algum tempo, surpreso com a invencionice. Ele me olhou e perguntou se eu não daria nada. Coloquei uma nota de cinco no pote e ele agradeceu com um toque no chapéu. Aproveitei a pausa para perguntar como ele sabia inglês. Disse que de onde veio todas as crianças aprendiam inglês. E ele sabia um pouco mais por causa da música, que sempre amara. Perguntei de onde ele conhecia Johnny Cash e Bob Dylan. Disse que seu pai os apresentara quando ainda era criança e já começara a aprender violão.
Ele era carroceiro e levava tudo para reciclagem, mas ficava com algumas coisas. Um dia achou o violão e os papéis no lixo. Se perguntou por que alguém teria jogado aquilo fora: “música é a única coisa de bom nessa vida”. Eu disse que talvez fosse alguém desapontado consigo mesmo e com sua música. Ele me olhou estranho. Eu me senti estranho. Ele riu e disse que essa deveria ser uma pessoa mesmo muito triste. Daí continuou sua história. Disse que quando viu o violão lembrou quando tocava com o pai e os amigos no interior. Ficou com saudade e o concertou. Pegou as folhas e tentou lembrar como era tocar. Fazia realmente muito tempo. Eu disse que estava boa, dentro do ritmo.
Eu perguntei como ele tinha vindo parar na capital. Contou que, como todo músico do interior de dezenove, vinte anos, veio com o sonho do estrelato. As pessoas da cidade dele diziam que ele era bom. Veio com pouco dinheiro e muita convicção: “mas isso só mesmo não basta”. Tocou em alguns bares, tentou mostrar composição própria pra alguns radialistas, mas nada. Não conseguia muito, a não ser tocar em bares e ruas. Ainda tinha dinheiro para voltar, mas que nisso nem pensava porque voltar daquele jeito era vergonha. E não queria acabar como peão de estância, depois que conheceu a cidade.
Ficou. Tentou mais um pouco, mas o dinheiro acabou. O pai não tinha mais pra mandar. Acabou indo viver na rua: primeiro cantando. Mas com o som eletrônico, o trabalho nos bares era mais disputado e ele não tinha dinheiro pra equipamento melhor. Precisaria de um parceiro com teclado, no mínimo, mas não conhecia muita gente. Se obrigou a vender tudo, até mesmo o violão, e foi ser catador de lixo. O pouco que ganhava era para viver, mas tentava sempre guardar um pouco e juntar a passagem de volta. Depois de tudo que tinha passado, voltou a preferir ser peão de estância. Depois de um tempo, achou o violão e as folhas. Estava tão cansado que resolveu tentar ganhar dinheiro de outra forma. E lá estava ele, na rodoviária, tentando juntar o resto da passagem.
Pedi quanto ainda faltava. Eu pagaria o resto pelo violão e as folhas. Ele olhou com esperteza para mim e depois para o violão. Disse que esperava voltar com ele porque tinha se apegado. Como eu não respondi nada, ele me olhou de volta e pediu porque eu queria aquele lixo velho. Porque fui eu que joguei fora, eu respondi. Ele me olhou nos olhos e eu mantive o olhar. Não sei bem o que tinha naquele olhar. Gostaria de ter descoberto. Me fez pensar muito. Mas realmente não sei.
Depois disso ele aceitou a oferta. Eu voltei para casa muito contemplativo e cheio de esperanças, junto com o violão e as folhas velhas.
segunda-feira, 28 de março de 2011
Entre Tapas e Beijos
Ele era um garotinho chamado Hermes que adorava imaginar. Junto com seus amigos recriava, na simples rua, os cenários elaborados para uma perseguição de polícia e ladrão; uma batalha medieval; um duelo entre pistoleiros do oeste; um campo de futebol para os craques da seleção nacional.
Dar vida aos seus brinquedos dentro de casa também era sua especialidade; criando histórias como as assistidas na televisão.
Certo dia, o pequeno Hermes achou um objeto quadrado, grosso, com uma capa preta e arabescos dourados. Abriu-o e viu apenas inúmeras figuras minúsculas, pretas e sem graça. Pediu ao pai o que era aquilo, ao que recebeu a resposta enigmática: um livro. O que viria a ser um livro? ele quis saber, e seu pai explicou que o livro contava histórias. O menino duvidou, pois histórias eram aquelas que ele assistia na televisão: divertidas e cheias de imagens. O pai sorriu e no dia seguinte trouxe para o filho um livro carregado de figuras coloridas. Uma nova experiência se abriu a Hermes. Tal qual um aventureiro explorando um novo mundo, ele devastava as imagens em busca de sentidos e histórias intrigantes. No início, os pais liam as palavras que acompanhavam os desenhos, mas ele não desgrudava dos livros mesmo quando não havia ninguém para lê-los para si. Inventava novas histórias, criava novas situações para aqueles personagens ali desenhados, enfim, imaginava e criava.
Foi quando, finalmente, disseram que ele iria aprender a ler e escrever na escola. Ficou excitado com a possibilidade de ele mesmo ler seus livros e, depois, ele mesmo criar suas próprias histórias. Foi imensa sua decepção, no entanto, quando descobriu que ler e escrever era tão chato quanto fazer contas. Tinha que decorar aquelas coisas chatas; tinha regras a seguir. Ninguém lhe avisou que existiam regras para escrever; ninguém lhe disse que tudo aquilo que ele imaginava livre e solto na sua cabeça, sem regra nenhuma, tinha de ser domesticado para poder ser posto no papel. Naquele momento, morreu, no pequeno Hermes, a vontade de escrever suas histórias. Preferia olhar televisão, imaginar as coisas e recriá-las no seu quarto, vestindo-se como seus personagens preferidos e montando cenários; afinal, para isso, não havia regras.
Anos passaram em que Hermes foi cada vez mais se decepcionando com esse tal de português. Por que tinha de ser tão difícil organizar aquilo que já estava pronto na sua cabeça? Ele tropeçava nas regras que não decorava e era obrigado a escrever coisas que não gostava. Não entendia como a professora podia dizer que estava errada uma frase escrita se ela fazia todo o sentido e qualquer um o entendia quando ele a falava.
Apesar de toda aquela dogmática experiência, a escolástica não conseguiu construir uma muralha entre ele e as histórias. Nem mesmo um imperador chinês poderia acabar com os livros na vida de Hermes, pois essa paixão era anterior e mais forte do que a cadeia das regras gramaticais. Dom Quixote e As Viagens de Gulliver nas versões infantis, A série Vagalume, Codinome Duda, Sherlock Holmes, Agatha Christie... Aos poucos Hermes percebia que lendo escrevia melhor e que só precisava decorar as malditas regras para as provas.
No ensino médio, até mesmo sua convivência com a gramática mudou; uma professora nova incentivou a escrita e tentou mostrar para ele e seus colegas como era mais fácil entender regras que encontravam no próprio texto. Hermes ainda não conseguia se relacionar melhor com elas, pois estava há muito tempo inculcado daquela decoreba safada que não o deixava pensar direito, mas gostava das aulas de redação onde podia exercer a escrita, fosse dando opiniões sobre assuntos recorrentes – como era bom ver suas idéias sendo postas no papel e, depois, sendo lidas e debatidas –, fosse narrando histórias que sua imaginação não cansava de criar.
Quando já pensava no que fazer da vida pós-escola, sua professora de português sugeriu que ele estudasse letras. A opinião dela era muito importante e, mesmo que nunca houvesse cogitado isso, pensou com carinho. Mas o fato era que ele e o português “correto” (na figura das regras gramaticais) ainda eram apenas amigos distantes que não se davam muito; sua relação era cheia de “não me toques”, “disse que disse” e eles realmente não se entendiam – ou era só Hermes quem não entendia o outro? Sabia que a sugestão fora dada porque ele escrevia bem – pelo menos era a opinião da professora e de alguns colegas – e não achava que só isso era motivo para agüentar anos estudando gramática. Sua decisão foi, logicamente, o jornalismo.
Seis anos se passaram em um curso onde escrever era meio chato para ele porque, se não estudava leis do português, era obrigado a aprender as leis do texto jornalístico, que em nada deviam em chatice. Se algo era certo na vida de Hermes, é que não gostava de leis em atividades que deveriam dar prazer. Por isso, trocou o texto pela imagem. Sempre gostara de cinema e televisão; eram outras duas formas de se contar histórias – e ele cada vez mais achava que isso era o que gostava de fazer. Pensava no cinema como a linguagem do presente que ainda seria, por muito tempo, a linguagem do futuro. Gostava de aprender as regras dele porque pareciam fazer mais sentido em sua cabeça – afinal, não as aprendera da mesma forma que as regras da língua.
No fim dos seis anos, porém, apesar de toda aquela emoção da nova paixão, Hermes ainda não se desgrudara dos livros. Muito pelo contrário, lia cada vez mais. Começou, por conta própria e sem nem saber direito, a se interessar pela forma como cada escritor moldava a língua para contar sua história. Além do cinema, a literatura voltou a ser um foco de muito interesse. E, por causa dela, ele voltou a iniciar um relacionamento com a gramática.
Voltara como se fosse uma velha amiga que há muito tempo não via; uma amiga com quem sempre brigava, nunca se acertava, mas que estava sempre presente (mais ou menos como uma mãe). E foi como se aquele tempo em que passaram separados um do outro, junto com o amadurecimento natural do rapaz, melhorasse a relação (exatamente como com uma mãe), e houve paz entre os dois.
A paz só veio porque Hermes percebeu a importância daquelas regras para poder fazer o que tanto gostava, mas mais do que isso: percebera que não eram regras tão rígidas assim; que podia lidar com elas de forma mais amigável; podia dialogar com elas; usá-las para seu bem, desde que soubesse o que estava fazendo. E ele soube, a partir do momento em que finalmente começou o curso de letras, que estaria dando um novo passo nessa relação. Uma relação que, entre tapas e beijos, vai ser a mais duradoura da sua vida.
Esse foi um texto escrito para a cadeira de Gramática e Estilo. Foi pedido que escrevêssemos sobre nossa relação com a linguagem. Como todo texto que tem tema pré-determinado, eu tive dificuldade em escrevê-lo, mas fiquei satisfeito que tenha saído um texto curto, pois normalmente escrevo muito. É também um texto simples e sem muitas pretensões. Vale ressaltar que ele é apenas meio autobiográfico, pois realmente não tenho lembranças da época em que me alfabetizei, por isso tive que inventar. Mesmo assim, acho que o sentimento contido é real.
Dar vida aos seus brinquedos dentro de casa também era sua especialidade; criando histórias como as assistidas na televisão.
Certo dia, o pequeno Hermes achou um objeto quadrado, grosso, com uma capa preta e arabescos dourados. Abriu-o e viu apenas inúmeras figuras minúsculas, pretas e sem graça. Pediu ao pai o que era aquilo, ao que recebeu a resposta enigmática: um livro. O que viria a ser um livro? ele quis saber, e seu pai explicou que o livro contava histórias. O menino duvidou, pois histórias eram aquelas que ele assistia na televisão: divertidas e cheias de imagens. O pai sorriu e no dia seguinte trouxe para o filho um livro carregado de figuras coloridas. Uma nova experiência se abriu a Hermes. Tal qual um aventureiro explorando um novo mundo, ele devastava as imagens em busca de sentidos e histórias intrigantes. No início, os pais liam as palavras que acompanhavam os desenhos, mas ele não desgrudava dos livros mesmo quando não havia ninguém para lê-los para si. Inventava novas histórias, criava novas situações para aqueles personagens ali desenhados, enfim, imaginava e criava.
Foi quando, finalmente, disseram que ele iria aprender a ler e escrever na escola. Ficou excitado com a possibilidade de ele mesmo ler seus livros e, depois, ele mesmo criar suas próprias histórias. Foi imensa sua decepção, no entanto, quando descobriu que ler e escrever era tão chato quanto fazer contas. Tinha que decorar aquelas coisas chatas; tinha regras a seguir. Ninguém lhe avisou que existiam regras para escrever; ninguém lhe disse que tudo aquilo que ele imaginava livre e solto na sua cabeça, sem regra nenhuma, tinha de ser domesticado para poder ser posto no papel. Naquele momento, morreu, no pequeno Hermes, a vontade de escrever suas histórias. Preferia olhar televisão, imaginar as coisas e recriá-las no seu quarto, vestindo-se como seus personagens preferidos e montando cenários; afinal, para isso, não havia regras.
Anos passaram em que Hermes foi cada vez mais se decepcionando com esse tal de português. Por que tinha de ser tão difícil organizar aquilo que já estava pronto na sua cabeça? Ele tropeçava nas regras que não decorava e era obrigado a escrever coisas que não gostava. Não entendia como a professora podia dizer que estava errada uma frase escrita se ela fazia todo o sentido e qualquer um o entendia quando ele a falava.
Apesar de toda aquela dogmática experiência, a escolástica não conseguiu construir uma muralha entre ele e as histórias. Nem mesmo um imperador chinês poderia acabar com os livros na vida de Hermes, pois essa paixão era anterior e mais forte do que a cadeia das regras gramaticais. Dom Quixote e As Viagens de Gulliver nas versões infantis, A série Vagalume, Codinome Duda, Sherlock Holmes, Agatha Christie... Aos poucos Hermes percebia que lendo escrevia melhor e que só precisava decorar as malditas regras para as provas.
No ensino médio, até mesmo sua convivência com a gramática mudou; uma professora nova incentivou a escrita e tentou mostrar para ele e seus colegas como era mais fácil entender regras que encontravam no próprio texto. Hermes ainda não conseguia se relacionar melhor com elas, pois estava há muito tempo inculcado daquela decoreba safada que não o deixava pensar direito, mas gostava das aulas de redação onde podia exercer a escrita, fosse dando opiniões sobre assuntos recorrentes – como era bom ver suas idéias sendo postas no papel e, depois, sendo lidas e debatidas –, fosse narrando histórias que sua imaginação não cansava de criar.
Quando já pensava no que fazer da vida pós-escola, sua professora de português sugeriu que ele estudasse letras. A opinião dela era muito importante e, mesmo que nunca houvesse cogitado isso, pensou com carinho. Mas o fato era que ele e o português “correto” (na figura das regras gramaticais) ainda eram apenas amigos distantes que não se davam muito; sua relação era cheia de “não me toques”, “disse que disse” e eles realmente não se entendiam – ou era só Hermes quem não entendia o outro? Sabia que a sugestão fora dada porque ele escrevia bem – pelo menos era a opinião da professora e de alguns colegas – e não achava que só isso era motivo para agüentar anos estudando gramática. Sua decisão foi, logicamente, o jornalismo.
Seis anos se passaram em um curso onde escrever era meio chato para ele porque, se não estudava leis do português, era obrigado a aprender as leis do texto jornalístico, que em nada deviam em chatice. Se algo era certo na vida de Hermes, é que não gostava de leis em atividades que deveriam dar prazer. Por isso, trocou o texto pela imagem. Sempre gostara de cinema e televisão; eram outras duas formas de se contar histórias – e ele cada vez mais achava que isso era o que gostava de fazer. Pensava no cinema como a linguagem do presente que ainda seria, por muito tempo, a linguagem do futuro. Gostava de aprender as regras dele porque pareciam fazer mais sentido em sua cabeça – afinal, não as aprendera da mesma forma que as regras da língua.
No fim dos seis anos, porém, apesar de toda aquela emoção da nova paixão, Hermes ainda não se desgrudara dos livros. Muito pelo contrário, lia cada vez mais. Começou, por conta própria e sem nem saber direito, a se interessar pela forma como cada escritor moldava a língua para contar sua história. Além do cinema, a literatura voltou a ser um foco de muito interesse. E, por causa dela, ele voltou a iniciar um relacionamento com a gramática.
Voltara como se fosse uma velha amiga que há muito tempo não via; uma amiga com quem sempre brigava, nunca se acertava, mas que estava sempre presente (mais ou menos como uma mãe). E foi como se aquele tempo em que passaram separados um do outro, junto com o amadurecimento natural do rapaz, melhorasse a relação (exatamente como com uma mãe), e houve paz entre os dois.
A paz só veio porque Hermes percebeu a importância daquelas regras para poder fazer o que tanto gostava, mas mais do que isso: percebera que não eram regras tão rígidas assim; que podia lidar com elas de forma mais amigável; podia dialogar com elas; usá-las para seu bem, desde que soubesse o que estava fazendo. E ele soube, a partir do momento em que finalmente começou o curso de letras, que estaria dando um novo passo nessa relação. Uma relação que, entre tapas e beijos, vai ser a mais duradoura da sua vida.
Esse foi um texto escrito para a cadeira de Gramática e Estilo. Foi pedido que escrevêssemos sobre nossa relação com a linguagem. Como todo texto que tem tema pré-determinado, eu tive dificuldade em escrevê-lo, mas fiquei satisfeito que tenha saído um texto curto, pois normalmente escrevo muito. É também um texto simples e sem muitas pretensões. Vale ressaltar que ele é apenas meio autobiográfico, pois realmente não tenho lembranças da época em que me alfabetizei, por isso tive que inventar. Mesmo assim, acho que o sentimento contido é real.
quinta-feira, 17 de março de 2011
História Simples Um - Apenas dúvidas
Para animá-la, ele colocou Sprawl II, fez uma dancinha na frente dela e puxou-a para dançar junto. Então falou com ela sobre o futuro:
- Já imaginou que daqui a trinta, quarenta anos essa música vai tocar e nós, velhos, vamos dançar de forma ridícula, relembrando os velhos tempos e rindo?
Começaram a falar disso. Como seria? Não tentavam imaginar tecnologias, cidades, pessoas. Era muito difícil. Apenas música. Se fosse para guardar hoje as bandas que possivelmente iriam tocar como grandes sucessos do passado (daqui trinta, quarenta anos), quais seriam? Arcade Fire era certo para os dois.
- Radiohead – ela disse.
- Radiohead não se dança.
- Não sabia que tinha esse pré-requisito. MGMT.
- Sim. Esses sim. Edward Sharpe and The Magnetics Zeros.
- Só lançaram um CD e só você ouve. Não fizeram muito sucesso. Tem que esperar. Killer, com certeza.
- Artic Monkeys também.
- Swell Season.
- Opa. É exatamente a mesma coisa que Edward Sharpe.
- É difícil.
- Da música foram adiante. Como seriam os filhos deles? Onde morariam? Trabalhariam no que? Será que seriam bem de vida? De que perigos teriam que defender seus filhos? Quais tipos de problemas enfrentariam? Ainda existiria natureza para apreciar? E lugares históricos para visitar? Quais seriam as grandes descobertas ou revoluções? Será que ainda existiria alguma descoberta ou revolução a acontecer? O homem em Marte? O primeiro condomínio na lua? Shopping Centers submarinos? Como seriam os livros que comprariam?
- Ainda existirá? – ele perguntou.
- Acho que sim.
- E nós compraríamos?
- Acho. Não sei nossos filhos. Mas nós...
E se calou como se a pausa disse mais que a fala.
Continuaram. Quais meios de transporte usariam? Ainda seriam necessários? Imaginaram cidades tão grandes e tão populosas que ninguém mais iria percorrer grandes distâncias. Todos iriam apenas viver no seu pequeno subúrbio onde existira tudo.
- Aí. Não diz isso, querido.
- Seria como um retorno a antigamente. Grandes feudos futurísticos.
- Tem gente que acredita que a história é cíclica. Será?
- Talvez nós sejamos a geração a descobrir e vivenciar.
E os filmes? 3D? A tecnologia já era certo. Já está a caminho. Mas e as tramas? Que tipo de histórias seriam contadas? Ainda existiriam histórias a serem contadas? Como seria a beleza das atrizes? Magras ainda? Ou gordinhas novamente? Quais seriam as opções de emprego? Haveria? E as roupas? Tecnologia? Nanotecnologia. E o que viria depois da internet? Será que viria alguma coisa?
- Meu Deus! – ela exasperou-se, querendo soltar-se dele – Prefiro não pensar. Dá um desespero! Parece que tudo está acontecendo tão rápido que nem vamos conseguir chegar lá.
- Será que vamos? – ele perguntou e abraçou-a com todo o ardor do seu corpo e espírito, como que querendo aproveitar o máximo de tempo que lhes restava.
- Já imaginou que daqui a trinta, quarenta anos essa música vai tocar e nós, velhos, vamos dançar de forma ridícula, relembrando os velhos tempos e rindo?
Começaram a falar disso. Como seria? Não tentavam imaginar tecnologias, cidades, pessoas. Era muito difícil. Apenas música. Se fosse para guardar hoje as bandas que possivelmente iriam tocar como grandes sucessos do passado (daqui trinta, quarenta anos), quais seriam? Arcade Fire era certo para os dois.
- Radiohead – ela disse.
- Radiohead não se dança.
- Não sabia que tinha esse pré-requisito. MGMT.
- Sim. Esses sim. Edward Sharpe and The Magnetics Zeros.
- Só lançaram um CD e só você ouve. Não fizeram muito sucesso. Tem que esperar. Killer, com certeza.
- Artic Monkeys também.
- Swell Season.
- Opa. É exatamente a mesma coisa que Edward Sharpe.
- É difícil.
- Da música foram adiante. Como seriam os filhos deles? Onde morariam? Trabalhariam no que? Será que seriam bem de vida? De que perigos teriam que defender seus filhos? Quais tipos de problemas enfrentariam? Ainda existiria natureza para apreciar? E lugares históricos para visitar? Quais seriam as grandes descobertas ou revoluções? Será que ainda existiria alguma descoberta ou revolução a acontecer? O homem em Marte? O primeiro condomínio na lua? Shopping Centers submarinos? Como seriam os livros que comprariam?
- Ainda existirá? – ele perguntou.
- Acho que sim.
- E nós compraríamos?
- Acho. Não sei nossos filhos. Mas nós...
E se calou como se a pausa disse mais que a fala.
Continuaram. Quais meios de transporte usariam? Ainda seriam necessários? Imaginaram cidades tão grandes e tão populosas que ninguém mais iria percorrer grandes distâncias. Todos iriam apenas viver no seu pequeno subúrbio onde existira tudo.
- Aí. Não diz isso, querido.
- Seria como um retorno a antigamente. Grandes feudos futurísticos.
- Tem gente que acredita que a história é cíclica. Será?
- Talvez nós sejamos a geração a descobrir e vivenciar.
E os filmes? 3D? A tecnologia já era certo. Já está a caminho. Mas e as tramas? Que tipo de histórias seriam contadas? Ainda existiriam histórias a serem contadas? Como seria a beleza das atrizes? Magras ainda? Ou gordinhas novamente? Quais seriam as opções de emprego? Haveria? E as roupas? Tecnologia? Nanotecnologia. E o que viria depois da internet? Será que viria alguma coisa?
- Meu Deus! – ela exasperou-se, querendo soltar-se dele – Prefiro não pensar. Dá um desespero! Parece que tudo está acontecendo tão rápido que nem vamos conseguir chegar lá.
- Será que vamos? – ele perguntou e abraçou-a com todo o ardor do seu corpo e espírito, como que querendo aproveitar o máximo de tempo que lhes restava.
Assinar:
Postagens (Atom)